Take off your shoes/This place you’re standing, it’s holy ground (Woody Guthrie)

Saí do cinema sob forte impacto. A história que acabara de assistir tem semelhanças com personagens e momentos importantes da minha vida. Trata-se de A verdadeira dor, com atuações espetaculares Jesse Eisenberg (David) e Kieran Culkin (Benji). O filme é livremente baseado na história familiar de Jesse. São dois primos judeus nova-iorquinos, com temperamentos e trajetórias radicalmente diferentes. Viajam juntos à Polônia para visitar a casa onde vivera a avó, sobrevivente do Holocausto por obra de “mil milagres”.

Há muito o que falar sobre o filme, fora do foco central da história. Alguns spoilers, poucos, serão inevitáveis. O massacre dos judeus europeus na Segunda Guerra Mundial, planejado e executado metodicamente pelos nazistas, repercutiu diretamente em minha geração (que nasceu pouco depois do conflito). O espectro dos campos de concentração e extermínio invadiu ambiente familiar, escola, relações dentro e fora da comunidade judaica. Verdade que os adultos evitavam falar de temas pesados com as crianças. Morte era “coisa de gente grande”. No entanto, aqui e acolá ouvíamos fragmentos de histórias que, aos poucos, montaram um painel de horrores.

Tive avós imigrantes. Os lugarejos pobres onde viveram na Europa Oriental foram devastados pela guerra, as populações judaicas caçadas e dizimadas. Nenhum deles jamais comentou as perdas que certamente ocorreram. Quem passou pela experiência de perdas extremas ou sobreviveu aos assassinatos podia reagir de duas formas. Falar, contar, testemunhar, é uma delas. Mistura de catarse e compartilhamento que consola. Primo Levi optou por ela e deixou um legado fundamental para se compreender o que aconteceu. Calar é a outra forma. O silêncio é defesa contra uma dupla vivência da dor.

Meu tio Bóris, um bessarabiano porreta, ensinou-me a olhar as estatísticas monstruosas do Holocausto de maneira diferente. Disse-me que os números da matança são importantes, mas mesmo que fossem apenas um centésimo de um por cento do que se conhece, tudo seria igualmente inaceitável. Importavam as razões, melhor seria dizer desrazões, que levaram à barbárie, à desumanidade, à crueldade. Entendê-las é essencial para manter o sentimento de indignação e educar as novas gerações contra todas as formas de bestialidade.

David e Benji visitam o campo de extermínio de Majdanek, a meros 3 km de distância de Lublin. No mais absoluto silêncio, percorrem as instalações construídas para matar em escala industrial. É impossível ficar indiferente. Benji, um tipo simpaticão, sedutor, exuberante, em estado de permanente agitação, não resiste. No trem em que volta para Lublin cai num choro incontido. Creio que foi uma combinação da memória da avó polonesa com o sofrimento pelo qual passaram, quem sabe?, vizinhos e amigos dela. O silêncio em Majdanek tinha muitos significados.

Meus sogros, poloneses, estiveram na Polônia nos anos 80. Visitaram Auschwitz, onde foram assassinadas mais de 1 milhão de pessoas, judias em sua imensa maioria. Em meio aos barracões insalubres, fornos crematórios e objetos pessoais das vítimas, meu sogro parou, abaixou a cabeça e chorou. Seus pais foram mortos lá dentro. É o tipo de ferida que não cicatriza. Não há palavras para descrever a intensidade deste tipo de dor. Palavras, nosso patrimônio mais nobre, são incapazes de descrever um solo de Thelonious Monk, um momento de paz interior, a cor de uma poesia, a banalização da crueldade.

Descobri que o título do filme é uma pergunta. Qual seria a verdadeira dor? A que gruda na alma trazida pelas heranças familiares? A da solidão mascarada pelo movimento permanente? A cena final – um close no rosto de Benji – sintetiza, em silêncio, sutilmente, as interrogações. Ele acabara de recusar o convite de David para jantarem juntos, a família reunida. Preferiu ficar sozinho no aeroporto, “onde tinha um monte de gente doida”. Bicho-homem, este estranho.

Abraço. E coragem.