Aí pelos anos 70 um livro chamou minha atenção. Enterrem meu coração na curva do rio, do norte-americano Dee Brown, mostrava um novo ângulo sobre a chamada conquista do oeste, a qual conhecíamos apenas pelos bangue-bangues hollywoodianos. Neles, os povos originários apareciam como selvagens, bandidos inescrupulosos e sanguinários, que se rebelavam contra os avanços “civilizatórios”. E tome chumbo. Eram dizimados impiedosamente, ao som de cornetas militares e trilhas sonoras gloriosas. Nós, ingênuos adolescentes, acreditávamos no heroísmo dos colonizadores brancos e seu suposto direito à rapina, à expropriação de terras, ao extermínio. John Wayne era o rosto e o método dos conquistadores.
Dee Brown adota a perspectiva dos dizimados. Eram povos com culturas complexas, profunda ligação com a terra ancestral e a Natureza, valores comunitários transmitidos por muitas gerações. O enterro mencionado no título era evidência da harmonia dos povos originários com a Natureza. Como em muitos outros casos em Nuestra América, estes povos passaram por um sistemático processo de aculturação, desprezo, isolamento e aniquilação física.
Um bom exemplo do que perdemos com a asfixia dos povos originários está nestas palavras do chefe Urso-em-pé, dos Sioux Oglala: “Só para o homem branco a natureza é ‘selvagem’, só para ele a terra estava infestada de animais e pessoas ‘selvagens’. Para nós era inofensiva. A terra era generosa e estávamos cercados de bênçãos do Grande Mistério. Até que o homem peludo do leste chegasse e com brutal furor amontoasse injustiças sobre tudo o que amávamos, não havia ‘selvagem’ para nós. Mas quando os próprios animais da floresta começaram a fugir à sua chegada, o ‘Oeste Selvagem’ passou de fato a existir”.
Essa história de enterro me levou, por associação misteriosa, a dar um salto. No final do século dezoito, existia um pequeno canavial cortado por um arroio em área onde hoje é o bairro da Tijuca. Um homem foi assassinado por aquelas bandas numa segunda-feira e decapitado. Enterraram o corpo ali mesmo e jogaram a cabeça, com os olhos furados, no riachinho. Passaram os séculos, o local virou um largo muito movimentado, confluência de três ruas importantes da Tijuca. É o Largo da Segunda-Feira, meu vizinho por alguns anos. Dizem que o fantasma do defunto perambula pelos ermos tijucanos em busca de sua cabeça. Uma das muitas assombrações desta cidade que tem nos assustado a mancheias.
Ali perto, já no tempo da gomalina, alguns jovens lançaram as bases daquele que seria o movimento da Jovem Guarda. Sem dar bola pra fantasmas, Erasmo Carlos, Tim Maia e Roberto Carlos reuniam-se no bar Divino, esquina de Matoso com Haddock Lobo, ao lado do cinema Madrid, azucrinando a vizinhança até altas horas e sonhando em replicar Elvis Presley e Bill Haley. Repertórios e cabeleiras. Das imitações iniciais começaram a aparecer letras próprias e lembro da febre que mandava tudo para o inferno.
Não vivi os sacolejos da Jovem Guarda. Naquela época, além de vestir uma timidez blindada, estava muito ocupado em sobreviver a uma perda duríssima e definir objetivos imediatos. Ao lado disso, eu começava a fazer parte da turma que achava “alienadas” as letras que os prafrentex compunham. Que negócio era aquele de calhambeque bi, bi? Senhor juiz, pare agora! Tremendão, tremendão! Era preciso, camarada, combater a ditadura em tempo integral. As disputas políticas acabavam vazando para o terreno musical.
A radicalização da classe média levava a excentricidades como a passeata contra a guitarra elétrica, em 1967. Elis Regina, Jair Rodrigues, Zé Keti, Gilberto Gil(!), Edu Lobo e o MPB-4, entre muitos outros, marcharam por ruas de São Paulo contra a presença de guitarras elétricas na MPB. Justo no ano em que os Mutantes acompanharam Gil na linda Domingo no parque.
O tempo passou, a Jovem Guarda, tal como o cine Madrid e o bar Divino, faleceu sem chover na minha roseira. Sempre estive em outra vibe. Agora, cá entre nós, como encaixou bem o Erasmo Carlos cantando É preciso dar um jeito, meu amigo no filme Ainda estou aqui ! O sectarismo, e suas variantes moderninhas, nunca faz bem.
Abraço. E coragem.