Está lá há algum tempo. Num cantinho recuado na boca da estação do metrô em Copacabana, a faixa rabiscada a capricho anuncia: rodízio de caldo de cana. Para acompanhar a bomba calórica, o funcionário anuncia os petiscos homicidas. Nunca dei bola ao palavrório, mas algo me chamou a atenção num dia de menos pressa. Aproveitem! Hoje tem pastel de pizza! No Rio, churrascarias rodízio oferecem também comida japonesa. Nada mais natural (sem duplo sentido) do que comer picanha mal passada acompanhada de sashimi de atum… Os estômagos cariocas têm blindagem dupla e bile à prova de bala. Pastel de pizza, no entanto, derrotou o folclórico pastel de vento da Central do Brasil no torneio dos nossos exotismos gastronômicos. Pessoal aqui gosta de viver perigosamente.
O resultado da comilança jaz nas escadas de acesso à plataforma. Restos mortais de pastéis, guardanapos, embalagens, canudos, copos, jogados nos degraus. A primeira linha de metrô do Rio foi inaugurada em 1979. Não demorou muito e comentava-se, à boca pequena, que o carioca virava sueco assim que entrava no subterrâneo. Um nível de civilidade que não se via no resto da cidade. O João que jogava a guimba na calçada vestia-se de Johanssen enquanto aguardava o trem, depositando o palito do picolé na lixeira. O malandro Kid Morengueira dava passagem para o sóbrio Ingmar Bergman.
Passados tantos anos, com uma privatização no lombo, os cariocas renunciaram à metamorfose nórdica. O metrô sintetiza hoje o comportamento comum aos que confundem espaço coletivo com território sem regras. A encrenca não se resume à sujeira crescente. As portas de acesso aos vagões estão permanentemente bloqueadas por passageiros (grudados em celulares), cada vez mais gente senta no chão dos vagões (o que é formalmente proibido), não há campanhas que orientem os usuários a usarem corretamente as escadas rolantes (quando estas não estão indisponíveis). Cada pessoa acha que é rainha do seu pedaço, cria suas próprias regras. Os incomodados que usem helicópteros ou batmóveis.
Dia desses estava num simpático bistrô perto de casa quando vejo entrar o Raymundo de Oliveira. Conhecemo-nos em várias trincheiras de resistência à ditadura civil-militar. Saudamo-nos fraternalmente e, depois de um dedo relâmpago de prosa, puxou-me para bem perto e segredou, com ironia: “Onde está o mundo melhor que você me prometeu?”. Sei muito bem o que ele quis dizer. Dá um certo travo amargo perceber que, depois de tanta luta, tanta esperança frustrada, o que vemos ao nosso redor é destruição, deixa-pra-lá e fortalecimento de segregações muitas. Nas ruas e cidades, no planeta. O que deu errado?
Falei do metrô carioca, mas há muitos puxadinhos nas vizinhanças. São os mais de 8.000 bares que entulham ruas e trovejam barulheiras. Caixas de som nas praias, urrando “música” (sic) e mensagens religiosas. Motos, patinetes e bicicletas competindo pelo título de bandalha do ano. Balas de todos os calibres em voo livre à procura de cabeças, troncos e membros. Além fronteiras, no mundo de mileis, orbans, trumps e seus parças, os pesadelos gerados há quase um século saem das tumbas e anabolizam-se. No meio do fogo cruzado, povos dizimados, êxodos forçados por miséria e violência, tecnologias a serviço da mentira e da ignorância. O que deu errado?
Talvez Luiz Antonio Simas tenha matado a charada. Simas é meu guru para temas cariocas e de cultura popular. No seu livro “Bestiário brasileiro”, apresenta-nos o Capelobo. Trata-se de um monstro com corpo peludo de homem e cabeça de animal (pode ser tamanduá-bandeira ou anta). Ardiloso, ele consegue parecer gente ao se aproximar das vítimas e, abraçando-as, abre um buraco no crânio delas e chupa-lhes o cérebro. As coitadas deixam de raciocinar e passam o resto da vida falando bobagens. Parece-lhes familiar? Será que houve, e ainda está em curso, uma invasão mundial de Capelobos? A culpa, cáspite!, vade retro!, é deles!
Abraço. E coragem.