1982. O Brasil era governado pelo general que seria o último do ciclo ditatorial iniciado em 1964. João Baptista Figueiredo, de triste memória, havia comandado o Serviço Nacional de Informações, ninho da arapongagem que aterrorizou democratas de todos os calibres, estilos e vocações. Sujeito de maus bofes, comparáveis aos de outro infame que serviu à ditadura, o general Newton Cruz. Figueiredo não se constrangeu em dizer que preferia cheiro de cavalo ao do povo. Quem viveu aquela época, há de lembrar da expressão azeda do milico, representação facial da caserna golpista.

O imperialismo norte-americano estava de olho no seu histórico quintal. Ronald Reagan, canastrão que presidia os Estados Unidos, desembarcou em Brasília. Foi protagonista de uma gafe patética. No rega-bofe que o Itamaraty ofereceu ao caubói, ele ergueu um brinde ao “povo da Bolívia”. Imagino a revolução gástrica nas tripas do general iracundo. Tentando consertar a bobagem, Reagan emendou: “Bem, na verdade, é para onde eu vou depois”. Pequeno detalhe: a próxima parada do ianque seria na Colômbia. Na cabeça liliputiana dele, no entanto, devia ser tudo a mesma cucaracha.

Esta passagem ilustra à perfeição a visão caricata, banhada em preconceitos, que o Grande Irmão do Norte tem sobre os povos que moram no que antigamente era rotulado como Terceiro Mundo. Somos o Zé Carioca que, em pleno Rio de Janeiro, papagaiava “saludos, amigos”. Por sorte, ou acidente, sem sombrero mexicano… Vestimos turbantes enfeitados com saladas de frutas. Servimos de refúgio para escroques em produções hollywoodianas. Viramos piada quando o personagem de Audrey Hepburn em “Bonequinha de luxo” dá o bote num fazendeiro brasileiro rico, achava que o cidadão ia ser presidente e ela viraria a “rainha dos pampas”. Ainda bem que não gritou “olé!”. Às vezes, este desprezo transforma-se em violência, como aconteceu no apoio norte-americano ao golpe de 1964. Amigos, amigos, canhões à parte.

Vivi a explosão dos quadrinhos nos anos 50 e 60. Devorávamos Fantasma, o Espírito-que-anda, e Mandrake na maior ingenuidade. O Fantasma, codinome de um certo senhor Walker, tinha residência numa caverna africana forrada de joias e metais preciosos. Dominava a tribo dos temíveis pigmeus negros da tribo bandar, que lhe prestavam vassalagem e agiam como guarda pretoriana. Ao longo dos anos, sua imagem foi associada à dominação do justiceiro branco europeu sobre “raças” subalternas.

Mandrake, um ilusionista, tinha um serviçal negro, Lothar. Dizia-se que era um príncipe africano. Nunca entendi como alguém, com linhagem real e força portentosa, subordinava-se tão pacificamente a uma pessoa que não dava a menor importância para sua cultura, suas tradições, suas inquietações. Servia como cenário musculoso para a dinâmica existencial do seu patrão.

São pequenas amostras de um caldo informativo/pedagógico que ajuda a traduzir o jogo bruto das lutas de classes. Penso que quando Trump declara que “não precisamos deles (dos brasileiros)”, não está se referindo apenas ao terreno econômico. Sua presunção, sua arrogância, leva-o ao isolacionismo, à confirmação narcisista de que a América (que ele, erradamente, associa exclusivamente ao seu país) não precisa de ninguém. Econômica, cultural e socialmente. Tal como na marchinha dos carecas, eles se acham os maiorais.

Com tudo isso sambando na cabeça, decidi rever um seriado antigo da televisão. É Jim das Selvas, cópia descarada de Tarzan, criação do Edgard Rice Burroughs. Estrelada, nos dois casos, por Johnny Weissmuller, ex-campeão mundial de natação em 1922. Revi um episódio de 1954, O homem crocodilo. Foram 60 minutos quase insuportáveis. História confusa, atores medíocres. Noves fora, a ladainha que mostra os brancos trazendo a “civilização” para os selvagens, o roubo explícito de riquezas naturais (para um governo convenientemente não identificado), os nativos vestidos como foliões de baile suburbano (mudos, subservientes, ridículos). Para lembrar sem a menor nostalgia.

Sei que há muito debate sobre a influência das primeiras leituras e experiências cinematográficas sobre a forma como enxergamos o mundo na idade adulta. Tendo a acreditar que, de forma complexa, é decisiva (embora não necessariamente definitiva). Na aurora desta segunda Era Trump, é bom lembrar os antecedentes do olhar norte-americano sobre nós. Quando o Agente Laranja defender a Great America, as consequências para nós, o “resto”, “os menores”, não serão pequenas. Tomara que se encontre um caminho de unidade para enfrentar a tempestade.

Abraço. E coragem.