Ela sempre falou das dificuldades com sua mãe, que teve nove filhos e ela era só mais uma. Seu amor pelos estudos desde muito cedo não era valorizado pela mãe, formou uma imagem negativa dela, e essa desvalorização também recaiu sobre ela. Um dia, após anos, falou de seu nascimento e a previsão que fez o médico europeu sobre a morte dela e da sua irmã gêmea. Elas nasceram prematuras e pesavam um quilo cada uma, diante da fragilidade dos bebês, o médico disse que ambas morreriam. Após uns seis meses a sua mãe encontrou o obstreta e ele perguntou: “Qual das duas morreu primeiro?”. A mãe disse que ambas estavam vivas, e ele, surpreso, pediu para visitar os bebês. Quem orientara a mãe tinha sido uma empregada doméstica que trabalhou na casa de outro médico, que diante de um filho prematuro, montou na cozinha o quarto do bebê precoce e pôs junto à cama dos pais. A mãe seguiu o que disse a empregada, e o fogão da casa da paciente se manteve aceso durante as vinte e quatro horas, dia e noite, através de pilhas de lenhas. Essa história já tinha sido contada de forma sintética, mas naquele dia foi recontada com muitos detalhes novos, pois fiz bem mais perguntas. A mãe teve ajuda de duas irmãs que cuidaram as gêmeas durante um ano inteiro. Depois de quase meia hora eu disse mais ou menos isso: “Graças à tua mãe, que foi ajudada por tuas tias, e à empregada, tu estás hoje aqui. Tu e tua irmã foram muito bem cuidadas e muito amadas”. No instante em que falava vi que brotaram lágrimas em seus olhos; ali percebi que algo novo estava ocorrendo, como se estivesse fazendo as pazes com sua mãe, e também consigo mesma.
Em boa medida havia esquecido como correu risco de vida e como sua mãe salvou sua vida. Percebeu com mais clareza o esforço da família para mantê-la viva, e os cuidados dia e noite a fizeram sentir-se especial, valorizada, amparada, desejada. Integrou um passado distante ao seu presente, pôde rever sua história desde outra perspectiva, e sua mãe cresceu de importância. Recuperar velhas histórias com outros significados pode abrir as portas para um mundo visto desde a ótica da gratidão. As vezes, a gente se fixa mais nos defeitos de quem nos amou ou ama, quase esquecendo das qualidades.
A palavra inconsciente, desenvolvida por Freud em seu Projeto e melhor ainda no capítulo VII de “A Interpretação dos Sonhos”, já existia. Foram os escritores românticos que primeiro exploraram o inconsciente, pois perceberam o quanto o ser humano era fragmentado em oposição ao racionalismo e iluminismo. Goethe, Rousseau, Schiller, Schilling, entre outros, antecederam Freud na percepção do quanto há de lembranças e memórias que não são acessíveis à consciência. Os processos mentais que surgem do inconsciente podem emergir através das formações inconscientes. Há dentro de cada pessoa um desconhecido que constitui as identificações que formam a personalidade de cada um. Esse desconhecido, esse estranho que convive com a gente, irrompe aqui e ali e gera, às vezes, sentimentos do quanto a gente não é o dono de si mesmo, sendo dominado por desejos inconscientes.
Freud, em uma entrevista à BBC em 1938, disse: “Eu descobri alguns fatos novos e importantes sobre o inconsciente. Dessas descobertas nasceu uma nova ciência: a psicanálise. Eu tive de pagar caro por esse pedacinho de sorte. A resistência foi forte e implacável. Finalmente, eu consegui. Mas a luta ainda não terminou”. Ainda hoje a luta não terminou, e seguirá, pois há dificuldade em perguntar sobre o que é esse estranho inconsciente. É preciso coragem para perguntar, e, por acreditar na importância da curiosidade sobre o indivíduo, a sociedade, convém voltar sempre à arte de perguntar.
De tempos em tempos creio ser saudável se perguntar sobre quem mesmo a gente é, e assim despertar o desejo de se conhecer melhor. Nunca se saberá tudo que contém as marcas mnêmicas, as marcas de um distante passado, entretanto, novas descobertas podem ajudar a gente na vida. O que é o inconsciente? O inconsciente não é só linguagem, pois os afetos, as pulsões, as sensações-percepções são irredutíveis a linguagem disse Julia Kristewa. O que é o inconsciente é uma pergunta que permanece, dentro de cada pessoa há um mundo esquecido de marcas mnêmicas. O bom de escrever é recordar histórias de um distante passado, que vão pedindo, uma a uma, para serem contadas.