Podia cair na prova. As professorinhas ensinavam que um dos primeiros nomes do Brasil foi Terra de Santa Cruz. Deve ter sido uma imagem deslumbrante para os velejadores portugueses que chegaram à costa do nordeste brasileiro em 1500. O que fizeram depois não merece medalha, mas aí já é outra história.
Hoje, na zona oeste carioca, há um bairro chamado de Santa Cruz. Abandonado pelo poder público e infestado de milicianos, seu IDH é quase lanterninha entre os bairros. Lá falta quase tudo. Em meio às carências muitas, há uma área de quase 200 mil metros quadrados onde funciona a Cidade das Crianças Leonel Brizola, concebida para dar esporte e lazer para a garotada local.
Sem apoio oficial faz tempo, a área degradou-se e está semiabandonada. O que você faria, perguntaria Lenine numa de suas canções e indagaríamos nós em santa aflição? Ora, recuperaríamos o local e incentivaríamos seu uso por escolas e comunidades vizinhas, às quais faltam estrutura para acolher criativamente crianças e adolescentes. Todos, aliás, muito cortejados pelas gangues para movimentar atividades criminosas.
É isso que pensa fazer o janota sorridente que nos governa, do alto de seu chapéu de palha demagógico? Claro que não. Ele acaba de anunciar o plano de transformar a Cidade da Criança em Parque Terra Prometida, um empreendimento dedicado aos evangélicos. Seria, em bom português, um parque de diversões religioso, que simularia lendas consagradas pela Bíblia. A piscina viraria o Mar Vermelho, prontinho para abrir-se aos hebreus em fuga do Egito. Não faltariam o Paraíso, os Montes Sinai e das Oliveiras. Este obsceno favorecimento de um segmento confessional em espaço público é uma agressão ao princípio da separação entre religião e Estado. Está virando rotina.
Fosse completo, não apenas idealizado, o parque deveria reservar uma área para castigar os ímpios, usando métodos sancionados pela Bíblia. Os pais insatisfeitos com as malcriações de seus filhos ganhariam varas para espancá-los, metaforicamente ou não. A morte por apedrejamento seria incentivada, num espaço privé, para os “crimes” de heresia, adultério, homossexualismo e idolatria. Não duvido que surgissem patrocinadores para o fornecimento dos meios para cumprimento das sentenças bíblicas, legitimadas por uma suposta autoridade divina. Pode parecer um roteiro inspirado no filme A Vida de Brian, mas as intenções do alcaide não têm qualquer semelhança com o espírito do Monty Python.
Muitos anos atrás, li um livro de popularização da matemática, escrito pelo soviético Yakov Perelman. Num dos capítulos, ele usa os dados fornecidos pelo Velho Testamento para calcular o que aconteceria no planeta caso chovesse exatamente como sugere o Dilúvio. O resultado é surpreendente. Na pior das hipóteses, a Terra seria coberta por uma película de cerca de 2,5 cm de água, claro que insuficiente para afogar todas as formas de vida como pretendia o deus implacável, de índole cruel e sentenças irrecorríveis. Sei que razão e crença são imiscíveis, a lenda continuará a ser contada e os fieis acreditarão que a arca de Noé tinha capacidade para abrigar casais de todos os seres vivos e comportava estoque de alimentos suficiente para alimentá-los durante longa jornada. Haja tecnologia, haja imaginação. Pré-história em estado bruto.
O prefeito é esperto. Está ampliando apoios para futuros voos políticos e afaga os evangélicos. Religião deixa de ser um assunto estritamente privado para se transformar em ferramenta de poder. Dentro de grupos e seitas há disputas ferozes pelo mercado da fé, que resvalam, não raro, para interesses bem materiais. Bom exemplo disso é a chamada Teologia da Prosperidade, que já deu luxo e riqueza para alguns espertalhões.
Respeito quem pratica sua fé com atitude introspectiva, no silêncio do diálogo com transcendências e na esperança de que encontrará interlocutor atento. Minhas buscas são outras, meus caminhos são diferentes, mas com estas pessoas compartilho as imensas interrogações sobre a existência humana. A combinação imprópria de aparelho estatal com prática religiosa nada tem a ver com estas vivências.
Abraço. E coragem.