Esta é a última crônica de 2024. Para registro dos autos, detesto o mês de dezembro. Não combino com a agitação mandatória das gentes, tomadas por um espírito de urgência e preparativos para um “ano novo” que, a rigor e como dizia Drummond, é apenas a continuidade de um fluxo que não se interrompe, nem se acelera por causa de champanhes e rituais a gosto do freguês.
Não farei balanços gerais do ano que se encerra, que estes já os há que bastem em todos os meios de comunicação. Sem grandes novidades, gente conhecida bateu as botas (os desconhecidos, os anônimos, estes nunca mereceram manchetes), catástrofes ambientais continuaram acelerando o desfecho cada vez mais irreversível da morte do planeta, guerras seguiram matando a rodo e devastando gerações e esperanças. Antonio Meneses e Ziraldo levaram consigo alguns pedaços meus.
Meneses, um carioca do mundo, continua frequentando meu aparelho de CD (não abro mão dele) com interpretações magistrais no violoncelo. Ziraldo entrou na minha vida pelo Pasquim e a Turma do Pererê e seguiu acariciando filhos e netos com um monte de novos personagens. Cada vez que ouço uma suíte para violoncelo de Bach ou releio a saga do Pererê e sua turma na Mata do Fundão, Meneses e Ziraldo ressuscitam. De qualquer forma, dá uma ponta de tristeza sabê-los fora do meu alcance visual. Morte tem dessas coisas.
Troco, leitor paciente, o balanço geral pelo pessoal. No ano que se encerra, tive algumas experiências contrastantes. No departamento Surpresas & Lamentos, testemunhei os últimos dias de vida de minha irmã. Final doloroso, a mostrar nossa fragilidade estrutural e levantar a questão urgente da abreviação consentida da vida, um direito tão óbvio que deveria ser universal. Também tive uma inesperada aula prática sobre loucura, neurastenia e colapso da razão. Alguém, ante estupefação geral de amigos, trocou a tulipa do chope por um copo de cólera. Sobraram para mim os estilhaços do surto psicocanalha daquele Mark Forest flácido. Li nos seus olhos transfigurados o beabá da ignorância, da alma ressentida e da indignidade. O faniquito sulfuroso do Maçaranduba, que o deixou isolado, serviu para reforçar uma pergunta que faço há tempos: de onde surge e de quê se alimenta o ódio?
No departamento Criação, um prazer longamente sonhado nasceu para o mundo dos vivos. Lancei um livro com seleção de crônicas. É o testemunho impresso da minha valsa com palavras. Quem rodopia neste tipo de dança, sabe como é difícil alinhar sentimentos, pensamentos vadios, memórias, com as palavras que melhor os traduzem. Pior é quando a seção de cordas desafina ou o maestro dormiu mal. Como transformar a hesitação num texto que convide à mesa quem lê? O que fazer quando é o silêncio que deve, que precisa, predominar?
Fim de ano também é época de ações regressivas. Reflexo persistente dos medos ancestrais, multidões procuram filiais das Organizações Tabajara, em busca de elixires que materializem o slogan “seus problemas acabaram!”. É aí que adentra o gramado, triunfal, a Superstição. Como o Homem das Cavernas ou a Maga Patalógica, toda a galera anonovista passa a acreditar em poderes mágicos da Natureza. Na aurora do homo sapiens, o Brucutu acreditava que raios e trovões eram comandados por forças sobrenaturais. Nada diferente de quem hoje acredita que, para atrair dinheiro o ano todo, basta passar a virada com uma nota de real e uma folha de louro (!) na carteira, mantendo-as ali o ano inteiro. Ou que comer 12 uvas à meia-noite do dia 31 de dezembro atrairá toda sorte de fortuna e sucesso. Impressionante como estas “simpatias” convencem gente que ficará ofendida se você perguntar se acredita em terraplanismo.
No ano novo, que não passa de uma convenção, espero apenas continuar seguindo velhos passos que me construíram e alimentar curiosidades que ajudem a dar sentidos aos mistérios que me intrigam. Ah, e também irrigar os afetos que me unem aos que acham que valho a pena.
Comecei citando o Drummond e termino com trecho do poema dele “Receita de Ano Novo”: “Para ganhar um ano-novo/que mereça este nome,/você, meu caro, tem de merecê-lo/tem de fazê-lo novo, eu sei que não é fácil,/mas tente, experimente, consciente./É dentro de você que o Ano Novo/cochila e espera desde sempre”.
Daí, esqueça as ondinhas, a cor que “dá sorte”, o banho de sal grosso (?), o chá disso e daquilo, os superpoderes da pobre lentilha. A bola não está nas estrelas. Ela está contigo mesmo, mermão. Caminante, já dizia outro poeta, no hay camino, se hace el camino al andar.
Abraço. E coragem.
Jacques