Ao Joaquim Ferreira dos Santos, pela inspiração involuntária.

“Agosto, desgosto”. Cresci achando que o oitavo mês do ano chamava desgraça. Mal saído dos cueiros, ouvi os Grandes, expressões pesadas, cochicharem sobre o suicídio do Getúlio Vargas, multidões em desespero nas ruas. Era agosto, 1954. Teria sido uma frustração amorosa? Um bife que desmerecia a memória gaúcha e clamava por haraquiri? Praga daquele mês agourento? Que sabia o Menino dos ardis, tramas, alcovas e trapaças da política nacional? A fase, para ele, era de calças curtas e inseguranças.

A vida preparou outros fados. Para mim vale o dito “fevereiro, vespeiro”. Neste mês, em anos diferentes, morreram cinco familiares diretos. Cinco lutos, cinco sentimentos rascantes, cinco reinícios penosos. Sou o último remanescente da família original e, nesse papel, aprendi a respeitar o mistério insolúvel da Morte. Seria exagero dizer que há uma forma de beleza nestas despedidas. Não há. O que me coube foi descobrir estratégias pessoais para definir o que é a Vida.

No último dia de fevereiro deste ano, minha irmã, radicada há muitos anos nos Estados Unidos, perdeu a batalha contra o câncer. Enfrentou-o corajosamente por três anos, fazendo planos, viajando, lutando. Não deu. Deixara claro que preferia acabar rapidamente caso a perspectiva fosse de transformar-se num vegetal espetado de tubos. Respeitamos seu desejo. Para ela, viver não era apenas durar com expedientes artificiais.

Pertencíamos a galáxias diferentes, mas tive com ela breves momentos em que o prazer da companhia dava algum sentido à vida, com sua essência efêmera. Num impulso mal planejado, casou-se em Los Angeles. Lá estivemos e o inesperado se fez belo. Saímos da casa dela para o local do casório ouvindo no carro uma rádio local. O programa chamava-se Breakfast with The Beatles, versão ianque do nosso Cavern Club, do impagável Big Boy. Minha irmã era devota do quarteto de Liverpool. Cantamos/tralalamos durante todo o trajeto. Foi um tal de Here, there and everywhere, A hard day’s night e She loves you, tudo tão feliz e intenso que, asseguro, ainda não acabou. Transitando para o Led Zeppelin, aquilo foi um Stairway to heaven. Como diz a letra: Makes me wonder.

O avô materno, imigrante, pequeno comerciante, viveu sempre no fio da navalha. Adoeceu gravemente e, hospitalizado em estágio terminal, teve um fim relativamente rápido. Certo dia, fui visitá-lo e cheguei na hora do almoço. Estava semiconsciente, tomando mecanicamente uma sopa rala. Os olhos estranhamente opacos. Apesar daquele estado, em que a Indesejada das Gentes já estava de plantão, afiando sua ferramenta implacável, meu avô reclamou severamente: “A sopa está sem sal!”. Naveguei entre choque e surpresa. Que importância podia ter um tantinho de sal para um moribundo? Não fazia o menor sentido. Hoje, acho que ele se agarrou, sem perceber, ao que simbolizava o sabor da vida. Não era, afinal, um vegetal. Tinha desejo de viver e queria ir assim, dignamente, até a última volta do ponteiro. Com saleiro e tudo.

Minha mãe viveu uma triste coincidência. Como assistente social, trabalhou alguns anos no Instituto do Câncer. Dizia, para um Menino atônito, que entrava em elevadores onde estavam enfermeiros levando órgãos de mortos para pesquisa, usando-os como malabares! Minha imaginação dava cambalhotas de horror. Quando adoeceu, ficou internada por um tempo naquele hospital, o que deve ter-lhe despertado más lembranças. Já em casa, para morrer em ambiente familiar, recusou certos cuidados paliativos. No fundo, decidiu quando era hora de saltar do bonde. Um direito elementar, que ainda hoje certos apóstolos do sofrimento, vestindo capa religiosa, teimam em censurar.

Tudo aconteceu em fevereiro, que não é para mim mês de ziriguidum, esquindô-esquindô e fantasia de pirata. É tempo de pensar nessas histórias, no que podem ensinar enquanto não termina meu prazo de validade. E la nave va.

Abraço. E coragem.