Livro não enguiça (Millôr Fernandes, fazendo sugestão de slogan para editores de livros enfrentarem a mídia informática de modo geral)
É de amargar. Pesquisa recente concluiu que, pela primeira vez, a maioria dos brasileiros não lê livros. Tudo muito estarrecedor. Entre os entrevistados, 53% não leram sequer uma parte de um livro nos três meses anteriores à pesquisa. Estão incluídas obras didáticas e religiosas, bem como edições nos suportes impresso e digital. Em números absolutos, houve uma queda de 6,7 milhões de leitores em relação à pesquisa anterior (cinco anos atrás). A parcela dos que afirmaram não gostar de ler subiu 7 pontos percentuais, ultrapassando a fatia dos que gostam muito de ler.
Há muito caroço debaixo deste angu. A ascensão das redes sociais e de todo tipo de detrito eletrônico sequestra tempo e neurônios de boa parte da humanidade. Na pesquisa que mencionei, muitos entrevistados alegaram “não ter tempo” para ler. Ora, é evidente que essa é uma escolha, não uma fatalidade. Mais fácil e ligeiro engolir memes fofinhos, bichinhos se comportando como humanos, receitas mil num país de desdentados, sensacionalismos e piadas imbecis do que encarar um texto que exige atenção, envolvimento com personagens e histórias complexos, exercício da imaginação. O resultado é que despenca o número de livrarias. O Rio de Janeiro perdeu 60 delas em seis anos. É um processo devastador, que propaga ignorância e pavimenta o caminho da desinformação.
Pequeno parêntese. Já existem várias doenças associadas à dependência de telas de tamanho variado. A nomofobia, por exemplo, é uma condição patológica relacionada ao medo de ficar sem o aparelho celular. É um povo que sua frio, tem espasmos nas tripas, taquicardia, boca seca e alucinações não-lisérgicas quando se vê ameaçado de perder conexão por frações ínfimas de tempo. Zumbis instantâneos. Livro não tem disso não. A aflição do leitor é, no máximo, a de lamentar não ter descoberto antes aquela história interessante e uma pontinha de inveja por não ter sido o escritor.
Para agravar o quadro de ataque à leitura, que está longe de ser epidemia apenas verde-amarela, há lugares onde a censura vai bem, obrigado. Na “maior democracia do Ocidente”, está em curso uma blitzkrieg em bibliotecas públicas e escolares. De acordo com a PEN America, organização que defende a liberdade de expressão na literatura, houve este ano 10.046 casos de banimento de livros nos Estados Unidos. As obras são retiradas de prateleiras de bibliotecas públicas ou de escolas. O cardápio da aberração vai de Shakespeare a George Orwell, de Oscar Wilde a Toni Morrison, de James Baldwin à, pasmem!, Bíblia (banida em Utah por “vulgaridade e violência”), de Hemingway a Flaubert.
De mãos dadas com os ianques, o governo argentino atual apoia pedidos de uma fundação conservadora para retirar das escolas de Buenos Aires alguns livros que considera pornográficos. Há resistência. Mais de 120 escritores fizeram leitura pública coletiva das obras ameaçadas, num teatro portenho. Livrarias expõem estes livros nas vitrines.
Sou incapaz de me imaginar sem livros por perto. O Menino se construiu desde cedo pelas palavras impressas. Através delas, percorreu pradarias, atravessou rios e riachos, estraçalhou escudos e armaduras, derrotou Botvinnik e Tal em partidas épicas, aprendeu a sonhar de olhos abertos. Valsou com donzelas setecentistas, capoeirou, tangou, bancou o ladrão de casaca, teve pernas tortas e renasceu em Itabira. Sem se mover, abraçado em capítulos que nunca têm ponto final.
Lamento os que se privam da experiência da leitura. Ficam menos capazes de compreender alhos e bugalhos. Perdem uma das formas mais ricas que o Homem desenvolveu para se comunicar. Desconhecem o prazer do convívio que se processa na imaginação, do compartilhamento de sentimentos que se julgavam isolados, das ideias que brotam de assombros.
Jorge Luis Borges dizia que a melhor imagem do paraíso seria uma livraria (em tradução livre). Ruy Castro pensa diferente. Para ele, em vez de livraria, o paraíso seria um sebo. Atrevo-me a fazer um cruzamento dos dois. Para mim, o Nirvana teria uma arquitetura mista. Parte livraria, com novidades em desfile infinito como a curiosidade humana. Parte sebo, com prateleiras habitadas por livros esquecidos, fungos, traças, poeira e beleza de imagens que marcam os caminhos incertos que nos trouxeram até aqui.
Abraço. E coragem.