Circo desarmado, a cidade volta ao aflitivo normal. Como sempre acontece nas reuniões deste tipo, o G20 produziu papelada, discurseira e fotos que vão rápido para a lata de lixo da História. Ninguém acredita à vera que as grandes questões internacionais se resolvem sob holofotes ou microfones abertos. Os jogos de poder são, por natureza, sigilosos e inescrupulosos. Não há sorrisos em guerras comerciais e culturais.

No meio do convescote, uma certa senhora, que me parece deslumbrada pela súbita notoriedade, deitou falação desastrada. O marido, velha raposa, passou-lhe um pito elegante, embora óbvio. Do episódio, resulta uma pergunta a quem interessar possa: quando é que vão extinguir o “cargo” de primeira-dama? Não falo de uma em particular, mas de todas. Nada vai me convencer que alguém ganha status/voz especial apenas porque está casada com um presidente. Seja da Associação Trairiense de Futebol, da Confederação Brasileira de Bocha e Bolão ou da Transnístria.

Aproveitando o banzé que se criou para a reunião do G20, uma revista inglesa publicou matéria sobre o quê os cariocas não tolerariam ouvir de visitantes (sic). Veio, claro, um desfile de clichês. Criticar, por exemplo, o hábito de andar com chinelos de dedo, a qualidade das cervejas locais, a suposta indolência em comparação com os paulistanos e a violência sob diversas formas seria entendido como ofensa. Bobagem grossa. Temos, os cariocas-raiz, um senso afiado e longamente cultivado de autocrítica. Razões não faltam.

Nosso trânsito foi muito bem definido por um californiano com quem conversei faz tempo. Ele cometeu a imprudência de alugar um carro para se movimentar na nossa cidade. Muitos sustos depois, desabafou: If you can drive in Rio, you can drive everywhere. O jeitinho sangue-nos-olhos ao volante tem velho pedigree. Júlia Lopes de Almeida, cronista da belle époque carioca, escreveu em 6 de agosto de 1912: “Quem tiver de sair a passeio pelas ruas do Rio terá por prudência de confiar sua alma a Deus antes de pôr pé nas ruas mais frequentadas pelos automóveis, que não matam só pelo esmagamento, mas pela sufocação também”.

As cervejas, das quais seríamos, na visão britânica, enfáticos porta-estandartes, jorram aos hectolitros da maior infecção da cidade: os bares, que entulham calçadas, propagam todo tipo de barulho sem qualquer controle, empesteiam o ar com as frituras que vendem. Uma praga de proporções bíblicas. Tenho inveja dos moradores de Praga, capital da república tcheca. Os vereadores de lá aprovaram medida que proíbe os chamados tours noturnos por bares (grupos de frequentadores que, sem medir decibéis, invadem estes espaços). Entre outras razões, alegaram a grave perturbação do sossego dos moradores. Pois é, lá não ignoram que a cidade vai além de coxinhas, pataniscas e tremoços. Por incrível que pareça, tem sempre gente morando nas redondezas.

Não vou citar o crescimento metastático das milícias, a miséria que se exibe nos becos, embaixo de marquises e nas calçadas, a mais absoluta indiferença à sujeira que se acumula em equipamentos urbanos, a sensação crônica de insegurança. Fico numa observação ligeira feita pelo Álvaro Costa e Silva, o Marechal, cronista bamba das coisas e gentes do Rio. De uns tempos para cá, disse o Marechal, há uma sonoplastia bossa nova no ar, que substitui o canto dos pássaros nas árvores. São os latidos, numa sinfonia neurotizada e sempre inacabada (que não se associe isso ao pobre Schubert). Cães de todos os tamanhos, dos unicelulares aos megatérios, reinam sem freios, transformando silêncio em pecado capital.

Não vivo numa cidade fácil, cada vez menos amigável, e não teria o menor problema de ouvir críticas de visitantes. Acho risível o bairrismo brega, que prefere olhar apenas para as lindezas da cidade e relevar os graves problemas do nosso cotidiano. Apesar de tudo, aviso aos navegantes: o Rio continua na minha pele, nos meus caminhos e senhor das minhas memórias. E, como diria o Chico, “mesmo com o nada feito, com a sala escura, com um nó no peito, com a cara dura, não tem mais jeito, a gente não tem cura”. Não tendo jeito, ué, a gente vai levando.

Abraço. E coragem.