Eram uma espécie de Quarteto Fantástico com digital mineira. Fernando Sabino, Hélio Pellegrino, Otto Lara Resende e Paulo Mendes Campos conheceram-se em Minas Gerais, mas foi no Rio de Janeiro que apareceram para o mundo. Cada um do seu jeito, mantendo por décadas uma amizade que ainda hoje, tempo de ligeirezas e superficialidades, espanta.

Havia uma outra dupla de mineiros que, mais tarde acariocados, teceram uma rede de afetos que atravessou mundos e fundos. Carlos Drummond de Andrade e Pedro Nava, interioranos, encontraram-se por acaso, nos anos 1920, em um restaurante de Belo Horizonte. Ali era o quartel-general de amigos em busca de movimento numa cidade proverbialmente quieta. Drummond chamou a atenção de Nava pelo temperamento tímido, de poucas palavras. Por uma dessas alquimias inexplicáveis, entrosaram-se.

Já no Rio, Carlos e Pedro nunca perderam contato. Ainda que morando na mesma cidade, trocavam cartas e mensagens carinhosas regularmente. Foi Drummond que estimulou o amigo, médico de prestígio, a escrever poesias, o que ele fez de forma bissexta. A partir dos anos 1960, foram assíduos frequentadores do Sabadoyle, sarau literário que acontecia aos sábados na casa do bibliófilo Plínio Doyle, em Ipanema. Drummond escreveu atas memoráveis dos encontros.

Prestes a completar 80 anos, Pedro Nava, com sólida carreira como reumatologista, cercado de amigos, saúde em dia, casado por quatro décadas com a mesma mulher, memorialista caudaloso, tomou uma atitude inesperada. Em maio de 1984, finzinho de noite, tocou o telefone de seu apartamento, no bairro da Glória. Dona Nieta, sua mulher, atendeu. A voz pediu para chamar Pedro. Ele atendeu e, ao desligar, parecia transtornado. Ninguém sabe o teor da conversa.

Sem que Nieta o percebesse, Pedro pegou um revólver e avisou que ia sair por uns instantes. Já na calçada, andou uns duzentos metros, apontou a arma para a cabeça e matou-se. Sua morte provocou uma onda de choque. Como era possível que uma pessoa como aquela, sem traços depressivos aparentes, com projetos interessantes em curso (seus livros memorialísticos viraram clássicos), sem dívidas ou pendências alucinadas, resolvesse acabar com a vida? É um mistério que ultrapassa o tiro dado naquela noite na Glória e faz lembrar, com pequena alteração, o bordão de um velho programa da rádio Nacional: Quem sabe o mal-estar que se esconde nos corações humanos? No programa, dizia-se que O Sombra sabia. Sorte dele, porque, em verdade, nenhum de nós sabe.

Vida e Morte andam por aí, em diálogo permanente. A gente acha que a cara da Morte, a Ceifadora Implacável, é feia. E é mesmo. O que fazer com ela é uma tarefa encarada de formas diferentes. Cada cultura, um olhar. O próprio Nava deu seu pitaco no poema O defunto, de 1938. Eis um trecho: “Quando morto estiver meu corpo/evitem os inúteis disfarces,/os disfarces com que os vivos,/só por piedade consigo,/procuram apagar no Morto/o grande castigo da Morte./Não quero caixão de verniz/nem os ramalhetes distintos,/os superfinos candelabros/e as discretas decorações./Eu quero a Morte com mau gosto!”. Sem choro, nem vela, talvez mesmo sem uma fita amarela. Morreu, acabou.

Há um filme japonês que mostra outra possibilidade, da tradição oriental. Igualmente respeitável, igualmente humana. Trata-se de A partida, de 2008. Um músico erudito desempregado volta para sua cidade de origem e, para manter-se, aceita ser agente funerário. Só que de um jeito pouco usual para nossos hábitos. Para que família e amigos levassem uma última imagem, mais suave, do morto, ele fazia uma preparação minuciosa, que terminava com maquiagem sofisticada para esconder a melancolia da ausência. É um filme lindíssimo.

Podemos não perceber, mas a silhueta da Morte aparece todos os dias em pequenas doses. Ela é um processo. Pode estar de tocaia nas multidões de estressados, tristes e inconformados com a vida que levam. Pode fungar na nuca dos adolescentes e crianças que arriscam a vida nos tetos dos vagões de trens, infância e juventude despedaçadas. Também pode agitar a foice coletivamente, enlouquecida, na espiral suicida que está levando o planeta à breca.

São palavras ao vento e uma homenagem ao Mistério. Daqui a uns cem anos, sou otimista!, a Morte terá levado todos os que nos deram um pouco de presença e nada seremos além de memória inexistente. Tudo se passará como se nunca tivéssemos andado por essa bela e efêmera esfera. Enquanto isso não acontece, vamos caminhando e cantando e seguindo a canção da Vida possível.

Abraço. E coragem.