Era como qualquer jovem de seus 20 anos. Sonhava com as primeiras relações amorosas, despertava para as inevitáveis vaidades, olhava com assombro para o próprio corpo. Só não era capaz de entender aqueles surtos de ansiedade extrema, que a paralisavam, e os pensamentos sombrios que ultrapassavam sua compreensão. Os outros, ah, os outros, logo lhe penduraram rótulos e medos ancestrais.

Assim foi Zosia, que viveu na Polônia profunda há cerca de 400 anos. À falta de maiores explicações para as “anormalidades” e acostumados a convocar o sobrenatural, os vizinhos cochichavam, bocas de Matildes, que ela era uma vampira.

Ao morrer precocemente, Zosia foi enterrada num cemitério sem nome com um cadeado no pé e uma foice de ferro sobre o pescoço. Eram as mandingas d’antanho para bloquear a porta de retorno do mundo dos mortos. Seus ossos acabam de ser desenterrados por um grupo de cientistas suecos que, usando técnicas de DNA, impressora em 3D e argila modeladora, reconstruíram seu rosto. A imagem revela olhos tristes, congelados no ambiente intolerante em que viveu. Não adiantaram cadeado e foice. Zosia reapareceu.

Minha geração fartou-se de assistir os chamados filmes de vampiro. Parece que havia uma obsessão hollywoodiana pelos descendentes de Vlad Dracul, o Conde Drácula, terrível empalador romeno do século XV. Os muitos condes que lhe sucederam alimentavam-se de sangue humano, chupado sem canudinho de carótidas assustadas. Adolescente, tive alguns pesadelos com essas criaturas fantásticas.

Visto hoje, o Drácula original, de 1931, interpretado por Bela Lugosi, desperta a empatia dos clássicos. Algumas décadas depois, Klaus Kinski reviveu o monstrengo de caninos salientes. Apesar da sobrecarga de hemácias sugadas, seu Drácula tem aparência anêmica e, tal como Zosia, um olhar triste, que desperta não horror, mas piedade. Dá para imaginar por quê. Está condenado a viver eternamente como um parasita, destruindo para se construir. No mínimo, entediante. Botando Freud na roda: o vampiro pode ter acumulado um descomunal complexo de culpa. Conseguem imaginá-lo no divã?

Por mais que a tecnologia avance e a ciência rompa barreiras, os homens têm dificuldade de se desligar de lendas, ideias de jerico e superstições. Há mulheres que ainda acreditam em bruxas, e não estou falando de Alceia e Memeia dos quadrinhos, ou de certas ministras. Marmanjos botam fé em gnomos, duendes, avantesmas e bolsonaristas moderados. Multidões dão palco para malucos/espertos, que profetizam futuros e determinam destinos de acordo com posições de astros. Nessa toada, prefiro olhar para vampiros como interessantes metáforas: cada um de nós certamente conhecerá gente real que suga energia vital de quem se aproxima e usa o medo como ferramenta de poder pessoal ou coletivo. Pior de tudo: essa turma é contagiosa.

Saindo do terreno pessoal, percebo que no mundo das redes sociais cresce a sensação geral de isolamento, de renúncia à solidariedade. Com efeito. Pesquisa global feita pelo Gallup em 142 países mostra que uma em cada quatro pessoas enfrenta solidão severa. Acrescida de solidão moderada, a proporção dobra. A OMS decretou a solidão como prioridade global de saúde. É uma epidemia, como se um imenso vampiro planetário drenasse o olhar coletivo e minasse as relações sócio-afetivas. Fosse um filme, chamaria isso de Vampiros de Almas.

Quando caminho pela orla de Copacabana, esbarro numa espécie de maluco beleza que parece entender de vampiragens. Ele fica parado na frente do prédio inacabado do Museu da Imagem e do Som, cuja obra começou em 2011 e já enterrou milhões de reais. Em silêncio, alterna gestos. Primeiro, aponta o indicador para o prédio. Depois, faz o sinal típico de ladroagem. Finalmente, segura os, digamos, países baixos e os balança em sinal de desafio. A mensagem é clara. Vocês aí, políticos vampiros dos recursos públicos, aqui ó!!

Abraço. E coragem.