Porque o tempo, o tempo não para (Cazuza)
Recebo muitos vídeos do Rio Antigo. Invariavelmente, mostram uma cidade bem cuidada, tranquila, sem pichações. Quando as imagens são do centro, desfilam senhoras elegantes e senhores engravatados, em solene contradição com o calorão nosso de cada dia. Apreciava-se vitrines de luvarias e chapelarias, tomava-se café Palheta em xícaras ferventes, comia-se pão doce com creme na Casa Manon, flanava-se na rua do Ouvidor, comprava-se pão árabe quentinho na padaria Bassil e balas de alcaçuz num bar da Galeria Cruzeiro. Quando a câmera passeia pela orla de Copacabana, o paredão de concreto ainda era uma impossibilidade. Predominavam casas e mocinhas em maiôs pudicos. Nada de quiosques desfigurantes ou barulho descontrolado. Era, em suma, um pequeno paraíso solar e a mensagem implícita dos filmetes é clara: caramba, olha só o que perdemos!
Bem, aprendi a colocar filtro no saudosismo. Neste departamento, meus passos são guiados, especialmente, por Ruy Castro e Millôr Fernandes. Ruy ironiza o apego ao que se habituou chamar de Anos Dourados (anos 1950 e parte dos 1960). Diz que, no fundo, a grande saudade, o brilho dourado, é do tempo de juventude, da época em que a vida parecia infinita ou, pelo menos, não se vislumbrava o fim da estrada. Olhando de perto a realidade, o paraíso perdido tinha perebas, equimoses e enxaquecas.
O transporte público era lamentável. Lotações eram permanente risco de vida. Os motoristas comportavam-se como aprendizes do Coringa, versão Joaquin Phoenix. Carlos Estevão, ótimo artista gráfico da época, retratou os lotações como versões terrestres dos caças da Segunda Guerra Mundial. Cada vez que os pilotos abatiam uma nave inimiga, registravam o feito através de desenho na fuselagem. No caso dos lotações, Estevão substituía os pilotos abatidos por pedestres atropelados, orgulhosamente exibidos por motoristas salivantes, barba por fazer, palito entre os dentes.
Naquele território idílico quase não havia vacinas. O Menino foi premiado com sarampo, catapora, coqueluche, rubéola e caxumba. Acabou salvo da poliomielite aos 45 minutos do segundo tempo. Nada demais para a época. Esse era o padrão da minha geração.
A expectativa de vida ao nascer no Rio beirava os 50 anos. Verdade que a televisão começava, lentamente, a popularizar-se, mas, quem viveu lembra, era preciso ter um chumaço de Bom Bril por perto para, pendurado na antena, tornar a imagem aceitável. Às vezes, ela sambava para cima ou para o lado, e os botões de controle nem sempre davam jeito no saracoteio. Na casa do Menino, que luxo!, chegou a ter um aparelho de TV com estabilizador de voltagem. Sim, ilustre passageiro, a energia elétrica soluçava um bocado.
Enchentes não são novidade recente. Aqueles foram anos muito molhados e arrasadores. Em 1966, ano em que o Grande partiu de vez, houve em janeiro um dilúvio de dimensões bíblicas. Choveu forte durante cinco dias, deixando um rastro de mais de 200 mortos e 50 mil desabrigados. Na vila do Menino, havia uma imensa pedreira em frente ao casario. Lembro dos adultos aflitos temendo que aquilo desmoronasse, o que felizmente não aconteceu. Paraíso?
A gente não tinha algoritmos, mas se apavorava com logaritmos. Muitos casais eram intolerantes, mas a moral cínica admitia as casas de tolerância, onde os homens estavam autorizados a se “aliviar” antes do casamento. As namoradas e noivas ficavam a ver navios e revolução da pílula anticoncepcional ainda não tinha dado as caras.
Ao se referir à infância, disse Millôr, O Irritante Guru do Méier: “Eu não gosto de contar vantagens, mas uma coisa posso afirmar: a minha infância foi tão maravilhosa quanto a de qualquer outro mentiroso”. Assim é. O paraíso de antigamente, complicado e perfeitinho, só se sustenta por memórias seletivas e pela lembrança, nutrida por corpos jovens, de um tempo em que tudo parecia possível. Hoje, a gente corre mesmo é atrás da esperança cantada por Nelson Cavaquinho: “O Sol há de brilhar mais uma vez”.
Abraço. E coragem.