Cena 1.

A pequenina calçava patins e vestia joelheira, cotoveleira e capacete. Hesitava no equilíbrio instável das rodinhas, ameaçava levar um tombo, não tirava os olhos do asfalto que nunca lhe parecera tão hostil. E lá ia, apesar de tudo, acompanhada pelo pai que, do lado em uma bicicleta, jogava carinhos em forma de apoio.

Como terminaria aquela jornada de sobressaltos? Por um momento, pensei que a menina ia desistir. Ela parou, mandou um olhar misterioso para o pai e agarrou-se nele, num abraço integral. Ouvi a conversa silenciosa dos dois e segui adiante na caminhada praieira. Quem sabe estava ali, em botão, uma competidora à altura do Chaplin patinador em Tempos modernos? Ou do Harpo Marx em The big store?

A imagem que invadiu a memória foi a da minha neta que, ainda de fraldas, me chamou para entrar numa cabaninha de pano. Agachei-me como pude e as articulações permitiram, fiquei sentado no chão ao lado dela. De repente, ela abre os bracinhos e abraça minha cabeça. Ficamos ali, avô babão e neta afetuosa, sem falar nada. Não era preciso. Existem comunicações melhores do que as palavras.

Na grande jornada da vida, sinuosa e cheia obstáculos reais e imaginários, dá esperança saber que há braços, abraços e memórias comuns que ajudam a não desistir.

Cena 2.

Entro na portaria do prédio onde fui praticar meu esporte favorito (sic): fazer exame de sangue. Atrás de mim apareceu uma moça bem jovem, empurrando uma cadeira de rodas. Sentado nela, um menino vítima de alguma forma de paralisia.

Prestei atenção em ambos. O menino esbanjava curiosidade, querendo saber isso e aquilo, como se a cadeira não fosse a prisão que eu imaginava. Incorporava o Forrest Gump, falava com voz de sonhos e desejos, sem dar a mínima para sua imobilidade. A moça, em contraste, era, como se dizia antigamente, a tristeza em pessoa. Um farrapo. Ajeitava com paciência a criança na cadeira, mas o fazia com o fardo dos séculos.

Duas vidas. Dois caminhos cruzados e paralelos.

Cena 3.

Vagão do metrô. O trem subterrâneo virou uma espécie de vitrine das misérias nacionais. Pedintes se revezam apelando para a compaixão das gentes mergulhadas em celulares. Aquele ali mostra uma suposta receita médica e pede colaboração para comprar remédios, o outro conta uma longa história de desassossego, azar e tristeza culminada por desemprego, um terceiro, desiludido da urbe voraz, implora qualquer moeda para comprar passagem e voltar para sua casa no interior do estado.

Dia desses, foi a vez de uma jovem senhora com uma criança dormindo no colo. Rosto destruído por não sei que tipo de trauma, queria o que fosse possível para aliviar a fome que dizia sentir. De um modo geral, os passageiros ficam indiferentes. A carência é invisível e percorre o vagão sem resposta.

Sempre me chamou a atenção o que quase todos falam. Prometem que deus abençoará quem ajudar. Deus sabe o que faz, assegura um velho adágio conformista. Impossível é deus pecar, diz outro. Meu fradinho interno fica inquieto e protesta: Será que a entidade suprema desabençoou tantos desesperados, a ponto deles precisarem prometer bênçãos para serem ajudados? Não há recurso neste tribunal surdo e implacável? Que critérios foram usados para desabençoar? Que justiça é essa?

Qual três atos de uma peça teatral, eu poderia costurar as cenas, dando-lhes um leito comum. Prefiro não fazê-lo. Transfiro-as para vocês em estado bruto, na certeza de que são um pequeno e diverso retrato da vida, sem restauro ou fantasias cenográficas. Como bem diz a canção That’s life, composta por Dean Key e Kelly Gordon, popularizada por Frank Sinatra: That’s life/That’s what all the people say/You’re riding high in April, shot down in May.

Abraço. E coragem.