A primeira impressão foi a de uma linha de montagem de automóveis. Estruturas metálicas fazendo movimentos ritmados, sem qualquer glamour. Olhei a legenda e não era nada disso. Um robô foi “treinado” para substituir um maestro e estreava, gelado como seus parafusos e porcas, na cidade alemã de Dresden. A máquina foi programada para reproduzir os comandos que compõem uma regência. Lembrei-me, num instantâneo nostálgico, da bonequinha mecânica que Dorinha Duval interpretava no Tele Rio Times Square, programa humorístico-musical dos anos 60, na TV Excelsior. A diferença é que a boneca transpirava empatia, impossível nos chips robóticos.
O que diriam disso gênios como Toscanini, Furtwängler, Karajan, Ozawa, Mehta, Dorati, Abbado, Barenboim? Reger uma orquestra vai muito além de ler e decorar partituras, de balançar uma varinha na frente de um monte de músicos. O encadeamento das notas musicais nasce de sensibilidades peculiares. Cada peça reflete não apenas um momento de inspiração, mas os sentimentos que se escondem por trás das partituras. A intenção do compositor não aparece automaticamente, é preciso que o maestro interprete o desejo original e cada um imprimirá a sua versão à obra. Uma geringonça metálica é incapaz de passar por este processo.
Quando, em priscas eras, fui introduzido ao jazz por um bom amigo, ele me falou da “superioridade” do gênero sobre a música de concerto. O jazzista era um improvisador, em estado permanente de criação. Nas peças chamadas eruditas, afirmava, repetia-se apenas o comando de notas congeladas nas partituras. Sem qualquer preparo técnico para contestar, aceitei aquela imagem.
Bem, não levou muito tempo e percebi que havia muito caroço debaixo do angu. A Abertura 1812, de Tchaikovsky, foi a primeira composição clássica que ouvi. Fazia parte de um LP de canções russas, interpretadas pela Orquestra de Filadélfia, sob a regência do já veterano Eugene Ormandy. Aquela passou a ser minha referência. A intensidade e mesmo a velocidade da música tinham a digital daquele maestro. Era daquela forma que ele imaginava que Piotr Ilich a tinha composto. Anos depois, ouvi a versão da Orquestra Filarmônica de Berlim, com Karajan na batuta. Outro universo, nem melhor, nem pior, apenas diferente. Não havia, ora pois, o congelamento sugerido pelo meu amigo.
Música não se ouve apenas com o ouvido. Há uma combinação de interferências quando se captura os sons. Sou bem capaz de ficar ouvindo o histérico Orlando Dias cantando o clássico brega Tenho ciúmes de tudo sem cair na gargalhada. É que o filtro da memória me transporta para o período em que isso era sucesso no rádio a válvula que tocava na casa do Menino. A dimensão afetiva ultrapassa os acordes melosos e aciona um prazer sempre renovado. Como programar a máquina para embarcar nessa viagem?
Há cientistas preocupados com a possibilidade da Inteligência Artificial sair de controle e liquidar a Humanidade. Quem sou eu para duvidar? Por enquanto, sou um pouquinho menos trágico e fico a imaginar o que aconteceria se um robô-maestro, no comando de uma solene orquestra sinfônica, tivesse um surto psicovirtual e trocasse a Polonaise por um hit da Bandinha do Altamiro Carrilho. Mesmo sem o Velhinho da Tuba, a turma de smoking & vestidos longos cairia na fuzarca.
Pensando bem, há várias maneiras de liquidar a Humanidade, além da incineração via armas nucleares. É matando a surpresa, o inesperado, o improviso, o inusitado, que jogam poesia na vida e dão algum sentido aos nossos caminhos.
Abraço. E coragem.