O tênue ontem das fotografias (Jorge Luis Borges)
Quem deu a dica foi o Ruy Castro. Sonny Rollins, grande sax tenor, hoje com 94 anos e na ativa, é o último remanescente de uma foto tirada por Art Kane em 1958 para a revista Esquire. Ele reuniu cerca de 60 jazzistas numa calçada do bairro do Harlem, em Nova York. Muitos deles fazem parte da trilha sonora da minha vida. Thelonious Monk, Count Basie, Art Blakey e Dizzy Gillespie chegaram aos meus ouvidos através da fantástica coleção de vinis do crítico Robert Celerier, que morava em Ipanema naqueles pré-históricos anos 60. Influenciado por ele e um grande amigo de faculdade, até que tentei aprender saxofone, mas naufraguei numa irreversível incompetência.
A ideia deste tipo de foto foi replicada em muitos cenários e variantes. Em 1967, os Beatles lançaram aquele que muitos consideram o melhor LP de rock/música pop de todos os tempos. Sgt. Pepper’s foi resultado de um processo introspectivo do quarteto, cansado de apresentações ao vivo em que mal conseguiam ouvir uns aos outros. Não dava para competir com a histeria das plateias beatlemaníacas. Nele estão clássicos como A day in the life e Lucy in the Sky with Diamonds. A capa é uma coleção de personagens que representam o arco-íris de influências dos rapazes: Wilde, Shaw, Dylan, Buda, Jung, entre muitos outros. Paul e Ringo são os últimos sobreviventes do painel.
Uma foto quase coadjuvante faz parte do meu álbum campeão. É a que aparece em várias cenas do filme De volta para o futuro, de 1985. O personagem Marty McFly a carrega no bolso e viaja ao passado para garantir que seus pais iriam mesmo encontrar-se num baile escolar e, paixão acesa, gerá-lo. Nos momentos em que o encontro amoroso esteve ameaçado, a imagem de McFly começa a desfazer-se na foto. Robert Zemeckis, o diretor, realizou um sonho de todos nós. Quem não gostaria de viajar no tempo para consertar uma atitude desastrada, um silêncio azedo, uma palavra mal colocada, uma oportunidade desperdiçada? Quem não gostaria de estar sempre bem na foto?
Tal como Sonny Rollins, também sou versado em remanescências. Sou o último exemplar de uma linhagem que embarcou na Bessarábia e na Polônia e ancorou, sem lenço e sem documento, na terra onde canta o sabiá. Poucos caíram no samba, quase nenhum contou piadas, todos comeram o pão que Belzebu amassou. A história desta saga pode ser narrada em algumas fotos, que, caprichosas, são como vagalumes. Às vezes transmitem afetos cálidos, outras vezes apagam-se num preto e branco antigo.
Fotos já não registram minhas transições e meus afetos temporais. Apagaram uma grande dúvida existencial: entre a geleia cor-de-rosa do Gumex e a pasta branca do Brylcreem, qual usar para transformar a cabeleira num aramado? Pouco trabalho para quem era forçado a usar corte à la Príncipe Danilo. Dissolveram as bicancas do valente Vulcabras, manto de couro para meias brancas. As pretas eram sonho para pós-adolescência. Amoitaram o pente Flamengo, o da torcida brasileira, estrategicamente guardado no bolso de trás da calça. Para usos emergenciais quando enfrentava ventos insolentes.
Reparando bem, percebo nelas os espectros que permaneceram ao longo da vida. O mais duradouro é o que me faz um peregrino à procura das palavras, que tentam dar algum sentido aos meus caminhos e criam pontes com as gentes. Quem traduziu à perfeição esta busca permanente, misteriosa e sem seguro contra acidentes, foi Marina Colasanti no pequeno texto chamado Profissão Escritor: “Um rio passava diante da sua casa. Desceu esse rio até o mar, atravessou o mar por vezes tempestuoso até chegar a uma terra que não conhecia. Um rio desaguava daquela terra no mar. Venceu as ondas que lutavam na foz, subiu arduamente esse rio até a nascente. E desovou”.
Abraço. E coragem.