Tento ver a eternidade/O infinito Eldorado/E vejo só, numa laje/Meu nome meio apagado (Millôr Fernandes)
Ele sempre tem o que falar. Oitenta e oito anos na mochila e uma filmografia extensa e densa, que o torna uma das grandes referências da história do cinema. Woody Allen deu entrevista à Folha de São Paulo e, sem demonstrar rancor pelo estúpido ostracismo a que está submetido, coçou minhas ideias. Mais do que isso. Expressou sentimentos que o tornam meu meio-irmão. Mil perdões pela ousadia.
Woody falou, sem nostalgia rançosa, da época em que ir ao cinema era muito mais do que estar no escurinho olhando para uma telona. Começava com belos cinemas, distribuídos sem parcimônia pelas cidades. Entre nós, quem se esquece do São Luiz pré-metrô, do Metro Tijuca e seu “ar condicionado perfeito”, do Roxy? Assistir um filme nas salas de projeção, lembra Woody, era um evento, uma celebração. Uma estranha sensação de comunhão, na qual se respeitava um silêncio cerimonioso para não atrapalhar o prazer de estar lá por quase duas horas. Sem os baldes de pipoca de tempos obesos e com ajuda luxuosa dos lanterninhas, bússola providencial para localizar os melhores assentos. Licencinha aqui, desculpe aí, o filme já vai começar. E lá vinham Clark Gable, Brigite Bardot, Ursula Andress, Sean Conery, Groucho Marx & irmãos, Jane, Henry & Peter Fonda, Stan Laurel & Oliver Hardy, Charlie Chaplin, Buster Keaton. Eliana Macedo, Oscarito, Cyl Farney.
As novas tecnologias, coaguladas nos streamings, transformaram completamente o cenário. Quase não há mais cinemas de rua, os filmes ficam muito pouco tempo em cartaz. Eles migram rapidamente para a televisão e a experiência coletiva, curtida em várias etapas, vira programinha individual e, no dizer de Woody (com o qual concordo), “sem romantismo, nada emocionante”. Pensando bem, é apenas mais uma perna da ligeireza que nos carrega no dia a dia. As telinhas cobram o seu preço.
O desconforto do cineasta, emprestado à multidão de personagens que criou, é a inadaptação aos tempos correntes. A mesma que sinto. Pareço uma sombra azeda quando, nas ruas ou no transporte público, vejo pescoços tortos sugando telas azuis. Contenho meus instintos selvagens quando, em salas de concerto, sou forçado a conviver com desqualificados que não param de digitar ou filmar. Tenho vontade de ligar para a Invernada de Olaria ao cruzar com basbaques que desrespeitam espaços públicos. Fico triste com a desfiguração da política, invadida por trambiqueiros belicosos e apocalípticos cínicos.
Woody Allen me proporcionou momentos de intensa experiência humana. É seu um dos melhores filmes que já assisti: Crimes e pecados. Há passagens antológicas em torno de temas que jamais perdem a atualidade: o sentido da arte (a luta do personagem Cliff Stern contra a mediocridade dos filmes), as versões da História (a genial cena do Pessah, em que a tia comunista discute poder x verdade), a “moralidade” dos crimes (fantástica interpretação de Martin Landau como oftalmologista que contrata o assassinato de sua amante).
Coerente com seu ateísmo, Allen diz na entrevista que não se importa se, depois de morto, queimarem ou jogarem ao mar seus filmes. Quem morre deixa saudade, mas não participa das ações de quem fica. Morreu, c’est fini. Não existe eternidade. Interessante que, em 1987, Carlos Drummond de Andrade afirmou que, em vinte anos, ninguém mais se lembraria dele. Pode-se alegar que, na ocasião, estava abalado pela morte recente de Julieta, sua filha e confidente maior. Não importa. Ele e Woody vivem e viverão enquanto houver gente com inteligência real e sensibilidade exposta. Mozart tinha 35 anos quando morreu, em 1791. Pois acho que a idade cronológica é de pouca valia. Quem ouve, por exemplo, a Missa de réquiem, sabe que ele tem 268 anos. E a contagem continua.
Abraço. E coragem.