Cessem todas as conversas. Coloquem laços pretos nas tristes camisas. Icem a meio mastro todas as bandeiras. Convoquem as carpideiras. Rasguem as vestes, façam minutos de silêncio. Preparem o manto da tristeza para o luto. Convidem Nelson Cavaquinho para, juntos, pedirmos que tirem o sorriso do caminho, pois queremos passar com nossa dor.
Minha rua morreu. Foi um processo lento e terminou sem formalidades ou balangandãs. As calçadas, e não era pré-história, estavam livres de mesas, cadeiras, barracas e pinguços barulhentos. Podia-se esparramar a caminhada sem risco de abalroamento por um garçon descuidado ou pedir licença para exercer o mais elementar dos direitos: andar despreocupado. Os caminhos das pedras portuguesas, espaço público, estão em grande parte privatizados.
Minha rua morreu. Nas esquinas, havia um comércio diversificado. Tinha até, vejam só, uma loja de cintas femininas. O mercadinho vendia um pão preto que vinha, assim informava a embalagem, da Ilha do Governador. Sempre achei que a origem era outra. A memória afetiva não se engana. Tenho certeza de que a linha de produção ficava num shtetl da Bessarábia. O dono do negócio, conhecido na região da aldeia, também comercializava arenques e pepino azedo. E tínhamos açougue, locadora de fitas de vídeo e DVDs, sebo, lojas de pianos e roupas. A rua falava muitos idiomas. Hoje, reina a monocultura etílica e de petiscos metidos a besta.
Minha rua morreu. A convivência com animais era pacífica. Raramente se ouviam latidos, respeitavam-se as orelhas e a paciência da vizinhança. Agora, como diz a música, é cinza, tudo acabado e nada mais. A solidão crônica das gentes, agravada durante a pandemia, multiplicou a presença dos bibelôs de quatro patas, que latem histericamente como se não houvesse amanhã. Os donos fazem ouvidos de mercador, acham natural a sinfonia desafinada e diabólica de seus au aus, mesmo os claramente neurotizados e ativos, sem hora para terminar. A rua, atormentada, morre sem paz.
Sobre a cachorrada, lembro de uma ótima sacada do Jerry Seinfeld, criador da melhor série de todos os tempos. Se um disco voador desembarcasse marcianos entre nós (sou do tempo em que marciano ainda era uma possibilidade de vida extraterrestre) e eles pedissem para ser conduzidos aos grandes líderes, o destino seriam os cachorros. Afinal de contas, quem é que anda por aí fazendo suas necessidades (desculpem a metáfora antiga) e tem um servo logo atrás recolhendo-as? Só podem ser os chefes. Nós? Ora, somos apenas os catabostas.
Minha rua morreu. Com seu corpo machucado, foi-se o silêncio. Os bares, em fase de metástase avançada, sequestraram os espaços de repouso, de convivência a meia voz, de intimidade sem alarde. Ao redor deles, orbitam sopradores de todo tipo de instrumento, “dançarinos” que balançam ao som de amplificadores assassinos, tocadores de bumbos e outras tralhas percussivas. As garagens insistem em acionar sinaleiras ilegais. Por enquanto, ainda não apareceram tenores, baixos, contraltos e sopranos, oi vei!, mas nada é tão ruim que não possa piorar. Minha rua morreu engasgada pelo barulho.
Minha rua morreu. Ela não tem palmeiras, nem conheceu sabiás. As árvores, esperança da pouca vida que resiste, abrigam alguns pássaros agitados, que teimam em me desmentir. Exiladas num tempo mais ameno, as aves pequeninas têm vasto repertório canoro e não se deixam enganar por minhas tentativas desajeitadas de assobiar no mesmo tom. Carregam, sem saber, a memória das linguagens extintas que a rua transmitia. Minha rua morreu, transformada em sombras cabisbaixas. Os passarinhos, no entanto, me ajudam a ficar vivo.
Abraço. E coragem.