Ruim é quando normalizam na disputa o dedo no olho e o chute no saco (Antonio Prata)

Primeiro semestre de 2018. Comentava com uma amiga a notícia surpreendente. A Associação Comercial do Rio de Janeiro, importante entidade empresarial fluminense, promoveria uma palestra com um pré-candidato à presidência da República, oriundo do baixo clero parlamentar, defensor de ideias inspiradas no fascismo e da ditadura civil-militar implantada em 1964. As inscrições eram obrigatórias e já havia fila de espera dos interessados.

Minha amiga procurou tranquilizar-me. “A burguesia, chave para financiamento de campanha, não vai apoiar essa figura grotesca, ele tem um teto de votos que não vai ser furado”. Tentei objetar que as últimas pesquisas indicavam crescimento consistente do personagem vulgar, que tinha chocado gregos e troianos com uma infame palestra na Hebraica/RJ e não parava de dizer sandices. Quanto mais “polemizava”, mais crescia.

Deu no que deu. No final de outubro, o indivíduo fecal deu uma coça no seu opositor, ganhando o pleito com quase 11 milhões de votos de vantagem. Foi apoiado não apenas pela burguesia, que lhe financiou a festa, mas por boa parte da classe média e de alguns segmentos que ele agrediu sem pudor (mulheres, negros, pessoas de diferentes orientações sexuais). Seguiram-se quatro anos de trevas, mediocridade, negacionismo da ciência, ataques à cultura, ao meio ambiente e à educação.

Seis anos depois daquela eleição, a gosma reacionária dá sinais de que fincou raízes na terra onde canta o sabiá e, ultimamente, crocitam corvos. Com um mínimo de sensatez, não dá mais para rotular as aberrações políticas como meros Cararecos e Macacos Tião do século XXI. Subestimar o Ogro e seus discípulos, com sua capacidade de interpretar um sentimento de cansaço com a política burguesa tradicional, aliado ao uso inescrupuloso (mas bem-sucedido) de redes sociais, facilitou a ascensão da extrema-direita no Brasil.

Agora, surge um novo “fenômeno”, candidato à prefeitura de São Paulo. Um ex-coach (ah, essa mania de se curvar aos anglicismos…) e influenciador digital emergiu como pilhéria e já tem a intenção de voto de quase 2 milhões de paulistanos. Ficou milionário vendendo cursos de autoajuda (um deles se chama Como ficar rico rápido) e sua campanha se resume à radicalização da estratégia do Beócio que o inspira. Xinga, ofende, dispara mentiras em ondas tsunâmicas, não sabe distinguir adversário político de inimigo pessoal, adere à promiscuidade da religião com a política, demonstra a mais absoluta ignorância sobre os temas que mais afligem a população e os limites da atuação de um prefeito. Usa com eficiência a linguagem e os artifícios técnicos das redes sociais, resultando num carnaval macabro que convence muita gente. Por que convence? Se o campo democrático não tiver respostas consistentes para isso, vai tomar outra tunda.

Breve intervalo. Os tais influenciadores são, hoje, mascates virtuais que vendem desde pente Flamengo (será?) e preservativos até ideias. De acordo com uma pesquisa, o Brasil é o país dos influenciadores. Já há mais deles do que engenheiros civis, médicos, dentistas e arquitetos. Quase metade dos usuários brasileiros de internet seguem esses caras. Fiquei pensando. Lá atrás, quem foram meus influenciadores? Monteiro Lobato, James Fenimore Cooper, Maurice Leblanc, Jules Verne, Charles Dickens, Moreira da Silva, Altamiro Carrilho, Paul Desmond, Charlie Mingus, Thelonious Monk. O que vendiam? Beleza e muita coceira no pensamento.

Voltando à realidade. Convém não subestimar este nada admirável mundo novo e seus porta-vozes. Não se trata apenas de um festival de vulgaridades, mas novas formas de dominação do espaço público. A política como arte de apresentação de ideias e visões de mundo diferentes está indo para a clandestinidade. Substituída por um universo paralelo, em que debate vira ringue, mentira vira verdade, programa político vira espetáculo, divergências viram ofensas. Alguém pode tentar me convencer de que tudo não passa de aspectos da democracia. Sei não, mas essa tentativa vai ser tarefa para Clark Kent!

Abraço. E coragem.