Dentre as manias que eu tenho/Uma é gostar de você/Mania é coisa que a gente tem/Mas não sabe porque (Flávio e Celso Cavalcanti)
Li nos últimos dias alguns colunistas de jornal dizendo que vão se desfazer de suas coleções de CDs. Argumentam que os canais virtuais lhes satisfazem as necessidades musicais e preferem liberar uns poucos metros quadrados de seus apartamentos. Entendo, mas, como em relação aos livros, meu comportamento é diferente. Uns e outros são, para mim, muito mais do que objetos sólidos que ocupam espaço.
Não se trata de esquisitice ou colecionismo doentio. Minhas manias eu cultivo em outros, e nem sempre louváveis, departamentos. Dia desses, por exemplo, não tinha a menor ideia de qual músico queria ouvir. Só tinha certeza de que precisava de música. Dei, então, uma olhada ligeira nas pilhas de CDs e esbarrei em Count Basie, Andras Schiff, Antonio Menezes e Jascha Heifetz. Dúvida resolvida. Ouvi todos. Como faria para dialogar com as plataformas balofas que têm “tudo”, sem informar, tintim por tintim, o que pretendia escutar? Essa vivência do espanto, do não saber previamente, da surpresa, só é possível usando primeiro o olho e, depois, o ouvido. Ponto para as caixinhas plásticas com os disquinhos.
Coisa parecida acontece com os livros. Não tenho a menor pretensão de ler todos os livros que acumulei. Precisaria de umas cinco vidas para isso. Acontece que cada exemplar tem uma história para contar e ela não está nas páginas. Como dimensionar o intangível? Ir a uma livraria é dar oportunidade ao inesperado. Ontem estive num sebo, sem qualquer interesse específico. É meu parque de diversões. Pois não é que, numa estante meio escondida, estava um Lima Barreto me esperando? Um Lima que desconhecia (textos escritos para a revista Careta, no início do século passado), editado na Paraíba, e gerou ótima conversa com o livreiro. Doravante, o exemplar falará pelos cotovelos sempre que for aberto. É uma linguagem silenciosa, cativante, não descartável, que me envolve num sentimento indefinível e transcende o papel. Não abro mão dele.
Há coleções humanas que foram sendo descartadas sem remorso, mas guardam memórias dolorosas. No século XIX, sob as ordens do papa Pio IX, a Igreja sequestrava meninos judeus de suas famílias para serem educados como católicos. O pretexto, brutal, era de que os pequenos tinham sido “batizados”. Um caso ficou famoso. Edgardo Mortara foi sequestrado em Bolonha aos seis anos e levado para Roma. Depois de intensa lavagem cerebral (alguns chamariam de “educação religiosa”), acabou reconhecendo-se como católico e afastando-se da família original. Coleção abominável de gente indefesa que, embora tenha desmoronado, não pode ser esquecida.
O que dizer da coleção de escravos que teve grande popularidade por alguns séculos? Uma coleção com alta rotatividade. Cada peça descartada por castigos animalescos, cargas insuportáveis de trabalho em condições insalubres, fome permanente, era reposta por traficantes. O Brasil foi o país americano que mais importou escravos da África entre os séculos XVI e XIX (4 milhões de homens, mulheres e crianças). Na importação, os africanos ficavam presos em porões de navios às vezes por 2 meses. Um em cada quatro não suportava o martírio. Barbárie organizada para garantir o luxo dos colecionadores.
Tive coleções confessas. A primeira exigiu renúncia. Nas férias escolares de verão, as editoras de gibis, EBAL no alto do pódio, lançavam almanaques, altamente cobiçados por terem mais histórias. Numa delas, o Menino cedeu seus almanaques do Tarzan e do Super-mouse em troca de uma coleção de selos, que ainda guardo como relíquia. Ali comecei a entender a diferença entre o efêmero e o permanente. Seguiram-se botões, plásticos, flâmulas, figurinhas, mais tarde engolidos pela adultice rígida. Eu ainda não sabia a importância daquilo que Mia Couto colocou na voz de um personagem: “Meu avô era um homem em flagrante infância”.
Temo que estejamos à beira de nos transformar, com nossos ossos, peles e ilusões, em objetos colecionáveis, personagens extemporâneos de Asimov e Bradbury. Há um intenso debate entre técnicos em computação sobre os limites da inteligência artificial. Uma parte considerável deles supõe que já estejamos perto de chegar a uma inteligência igual ou superior à humana. Se estiverem certos, parafusos, placas e chips terão livre arbítrio e poderão, em algum momento, vingar HAL, seu distante bisavô falecido no 2001: uma odisseia no espaço. Seremos os inferiores a serem banidos ou, na melhor das hipóteses, transformados em adorno para colecionadores mecânicos. Pelo sim, pelo não, é bom ir escolhendo um lugar confortável nas prateleiras. Lá longe, em preto e branco, o simpático robô do seriado Perdidos no espaço adverte: Perigo! Perigo!
Abraço. E coragem.