Semana passada compareci a uma roda de leitura (sim, elas ainda existem!) para falar sobre temas do livro que lançarei em breve. Saí do papo pensando, dúvida recorrente, nas razões pelas quais escrevo. Para quê criar textos numa época de ligeirezas tamanhas e paciência anã? As notícias sobre o aperfeiçoamento da chamada Inteligência Artificial sugerem que, não demora muito, escrever será atividade terceirizada para máquinas, em larga escala. O que virá em seguida é assunto para sobreviventes e românticos escritores de ficção-científica.

Anos atrás, assisti um pequeno curso de introdução ao jazz, dado por um querido amigo, professor de violão. O jazz é, essencialmente, a arte do improviso. Há um diálogo simultâneo em três dimensões. Primeiro, o grupo de músicos (trio, quarteto) apresenta o tema geral, dialogando entre si. Em seguida, os solos. Cada instrumentista apresenta sua visão, improvisada, do tema. Dialoga consigo mesmo. Finalmente, e ao longo da performance, o diálogo é com o público. Quando funciona bem, esta cadeia sonora cria joias da sensibilidade humana.

Acho que a sequência jazzística tem muito a ver com meu método para escrever. Quando sento na frente da tela, misturo tema (que se transforma em apenas uma referência) e diálogos comigo mesmo e com os que vão ler o texto. Sobrevoando tudo, uma galeria de fantasmas. Sobre estes, gosto de mencionar a última cena de uma série já antiga.

Shtisel se passa numa comunidade de judeus ultraortodoxos, em Jerusalém. Há o choque permanente, tenso, entre o respeito a regras rígidas, ancestrais, e o desejo de mudanças, representado pela geração mais nova. Luta, de resto, construtora da História humana. Na cena final, estão sentados à mesa três homens. Um deles diz que encontrou num banheiro público (!) o livro de um “herege” e, surpresa, tinha lá uma coisa bonita. Quem é ele?, perguntam os outros. Scholem Aleichem? Mendele Moiher Sforim? Não, não, era polonês. Isaac Bashevis Singer? Esse! Pois então, ele escreveu que os mortos não vão a lugar algum, estão sempre entre nós. Cada homem é um cemitério. A câmera se afasta um pouco e todos os personagens que morreram ao longo da história reúnem-se numa sempre acolhedora mesa judaica. Pepino azedo, halá, pão preto, guefilte fish. E os mortos conversam com os vivos.

Tenho sempre muitas perguntas para os meus fantasmas. Dúvidas que foram abortadas pela Indesejada das Gentes, por minhas arrogâncias e inseguranças nos momentos críticos, por autossuficiências adolescentes, por silêncios que cultivaram movidos por dor e solidão. O jeito é pedir licença a eles e inventar respostas.

Sigo também na trilha de Maurício Rosencof. Uruguaio, ex-militante do grupo guerrilheiro Tupamaros, Maurício escreveu Las cartas que no llegaron, cujo núcleo é sua família de judeus imigrantes poloneses. A correspondência dos pais, moradores de Montevidéu, com os parentes que haviam ficado na Europa é interrompida abruptamente com o início da Segunda Guerra Mundial. A angústia das dúvidas substitui a esperança de receber notícias. E o silêncio preencheu os espaços. O que diriam as cartas? Trazendo para mim: o que diriam as mensagens jamais enviadas pelos que me ofereceram silêncio e eu, resignado, aceitei? Os mortos nunca morrem, isso é certo, mas em que língua falam? Que fantasmices aprontarão nos momentos de relaxamento, se é que os há? Assobiarão marchinhas antigas em etéreas chuveiradas? Inventarão piadas?

Um homem caminha entre os escombros de uma livraria demolida. Restos de velhos exemplares misturam-se com pó, ferro retorcido e memórias. O sol tímido ilumina uma folha amassada, que vibra com a brisa amena. Curioso, vai até lá, senta-se no cimento morto, limpa a poeira e lê: “Semana passada compareci a uma roda de leitura…”. Levanta os olhos e tem a impressão de ouvir cantorias antigas. Dolentes. No ar, misterioso, emana o aroma de um strudel saindo do forno. Sorri e volta a ler.

Abraço. E coragem.