Se deus é tão bom, como pode deixar as pessoas sofrerem desse jeito? (Toshiko Sasaki, sobrevivente da bomba atômica lançada pelos norte-americanos em Hiroshima)
O noticiário torrencial sobre a Venezuela dá o que pensar. Não tenho a menor simpatia pelo “socialismo” de Nicolas Maduro, caricatura lamentável de liderança política. A lisura das recentes eleições presidenciais é contestada mesmo por setores à esquerda, como o Partido Comunista Venezuelano, partido que Maduro hostiliza faz tempo. Na América Latina, entretanto, temos o direito, e mesmo o dever, de não sermos ingênuos. Em nome deste direito, lanço algumas dúvidas ao vento.
Haverá mesmo um surto democratizante, de caráter global e por questões de princípio, que não se limita à vigilância sobre a Venezuela? Daqui por diante, todas as eleições no mundo, de Madagascar a Bangladesh, de Fiji às Malvinas, serão minuciosamente acompanhadas por observadores internacionais, amplamente noticiadas com destaque e submetidas a apurações paralelas? Suspeito que não é esse o caso. O interesse é seletivo, circunstancial, e convém observar o panorama geral incluindo este fator.
Quando o Iraque invadiu o Kuwait em 1990, os Estados Unidos intervieram imediatamente para expulsar o invasor. Um analista ianque ferino comentou que se o Kuwait produzisse brócolis ao invés de petróleo, Saddam Hussein poderia permanecer ad aeternum em solo kuwaitiano, sem ser molestado. Eis aí o detalhe. A Venezuela tem a maior reserva petrolífera do planeta. Maior do que a da Arábia Saudita, onze vezes maior do que a brasileira. Aos olhos do imperialismo, tem que ficar em mãos confiáveis. De preferência, nas das oligarquias corruptas que dominavam o país antes de Hugo Chávez. Com elas no poder, ninguém ouvia falar da Venezuela. Estava tudo dominado.
Acho curiosa a posição norte-americana no imbróglio venezuelano. Parecem, oh céus!, preocupados com a democracia. Não há país no mundo com maior histórico intervencionista. A América Latina nunca deixou de ser vista como quintal do Grande Irmão do Norte. A lista de golpes apoiados política, militar e financeiramente pelos EUA é robusta. Quando Allende presidia o Chile, Nixon e Kissinger combinaram “lançar o caos” no país andino. No golpe civil-militar de 1964 no Brasil, a embaixada norte-americana era uma espécie de QG golpista. O embaixador Lincoln Gordon flanava com desenvoltura no meio da malta fardada. Com este currículo sombrio e dados os interesses geopolíticos em jogo, é preciso incluir no cenário a mão pesada do establishment norte-americano. Repito: não há que ser ingênuo nesta hora.
É aqui, na bruma densa da História, que trago uma triste lembrança. Amanhã será o 79º aniversário do maior ataque terrorista da história da humanidade (terrorismo na definição da ONU). No dia 6 de agosto de 1945, às oito horas e quinze minutos, o bombardeiro norte-americano Enola Gay lançou sobre a cidade japonesa de Hiroshima a primeira bomba atômica da história. A área não tinha qualquer interesse militar. Denominada Little Boy, a bomba causou cerca de 100.000 mil mortes imediatas e dezenas de milhares a mais ao longo do tempo, por causa dos efeitos da radiação. Mais de 70% de todas as edificações foram destruídas. O calor gerado pela explosão chegou a 6.000 graus Celsius. Três dias depois, outra bomba, a Fat Man, seria lançada em Nagasaki, matando instantaneamente cerca de 50.000 pessoas.
Como classificar estas carnificinas, que se seguiram aos bombardeios de saturação sobre outras cidades japonesas (numa única noite, causaram 80.000 mortes em Tóquio, civis em sua enorme maioria)? Uma boa ideia é comparar com a definição que o presidente norte-americano Harry Truman usou para os bombardeios nazistas sobre Espanha (durante a Guerra Civil), Inglaterra e Holanda: “Barbárie desumana que chocou profundamente a consciência da humanidade”.
Batman e Coringa, Super-Homem e Lex Luthor, Sherlock Holmes e James Moriarty, Branca de Neve e a Bruxa da Maçã, Popeye e Brutus, Tio Patinhas e os Irmãos Metralha. Tudo bem que na ficção é oito ou oitenta, mas a História real não pode ser entendida como uma contenda simples entre a Virtude absoluta e o Mal definitivo. Há cruzamentos, opacidades, linhas sinuosas, tentações, idas e vindas. Difícil, trabalhoso, mas quem disse que viver e compreender é um passeio na orla?
Abraço. E coragem.