Se algum político graúdo dissesse que, no sistema capitalista, não precisa prestar contas a ricaços e banqueiros, das duas uma: caiu de boca numa viagem lisérgica ou avaliou muito mal a correlação de forças que o sustenta no alto do pódio. Em qual das duas hipóteses você enquadraria o Lula, que disse exatamente isso dias atrás?
No primeiro momento, pensei que havia um mal-entendido. Depois, vi que a declaração era verdadeira. O companheiro ex-metalúrgico subestimou grosseiramente o terreno movediço em que pisa, iludiu-se ao achar que seu cargo executivo, com as pompas de praxe, elimina as verdadeiras fontes de poder na várzea capitalista. Seria o caso de perguntar: há mobilização popular para colocar em segundo plano os interesses do capital? Existe um projeto político, com apoio de massa e liderança consistente, para substituir o modo de produção que não para de gerar ricaços e encher as burras da especulação financeira? Um dado relevante para mostrar o desequilíbrio de forças. A parcela de trabalhadores sindicalizados no Brasil caiu pela metade nos últimos onze anos.
Sobre quem manda neste tipo de jogo, uma pequena mostra. Muita gente comenta o desempenho desastroso do Biden no debate com o Trump. Verdade, o canastrão tóxico de Mar-a-Lago, navegando num oceano de mentiras, reduziu a pó seu adversário. Poucos, no entanto, mostram o que realmente importa. Quem ganha com uma liderança como o Topete Laranja? Durante seu mandato, ele aprovou uma grande redução de impostos para os ricaços, que resultou num ganho de US$ 240 bilhões entre 2018 e 2021. Neste período, lucraram 44% a mais e pagaram 16% a menos de impostos federais. Wall Street, sempre atuando nos bastidores, não está nem aí para democracia formal, sobrevivência do planeta e outros penduricalhos “esquerdistas”.
Não acredito em mudanças a golpes de perdigotos. Isso pode ter alguma validade apenas no trololó eleitoral. Há muitos anos perdi todas as ilusões sobre o reformismo. O sistema que gera lucros privados como objetivo e espalha miséria, desigualdade e exclusão sempre terá limites para autorreformar-se. Pode-se maquiar a realidade usando, por exemplo, metáforas velhacas para exprimir velhas dominações. Chamar trabalhadores de colaboradores muda apenas as letras, a exploração permanece intacta.
Ao longo da vida, trabalhando em empresas públicas e privadas, testemunhei a cobiça, a má-fé e a desonestidade crônica de muitos capitalistas. Uma das primeiras experiências foi numa empresa produtora de fibras sintéticas, no Polo Petroquímico de Camaçari. Lá estive acompanhando o projeto pelo BNDES. Conversei com um engenheiro que estava em licença médica. Disse-me que havia contraído hepatite tóxica por falta de equipamentos de proteção que deveriam ter sido fornecidos pela empresa. A absoluta indiferença pela saúde dos trabalhadores era regra geral numa área de enorme lucratividade. Surpresa nenhuma.
Em outro momento, já como dirigente sindical, ajudei a população da Penha, zona norte do Rio, a lutar contra a poluição atmosférica despejada por um curtume no bairro. Os donos da empresa recusavam-se a instalar sistemas para reduzir a carga poluidora. O balancete tinha mais valor do que a saúde dos trabalhadores e da vizinhança.
É urgente trabalhar pela ultrapassagem do sistema que deteriora a humanidade e devasta o planeta. A desigualdade e a crueldade não surgem por geração espontânea. A apropriação privada do fruto do trabalho coletivo gera monstros como a obscena desigualdade de renda. Segundo a Oxfam, a fortuna dos cinco homens mais ricos do planeta dobrou desde 2020. No mesmo período, as 5 bilhões de pessoas mais pobres tiveram sua renda reduzida. Estudos recentes avaliam que, a seguir na mesma batida de hoje, os oceanos terão mais plásticos em 2050 do que peixes. Enquanto os super-ricos aquecem o mercado de submersíveis, gente desesperada cruza os mares em barcos precários, morrendo a granel. Como naquele que levava 170 passageiros e afundou na costa da Mauritânia, matando quase 90 deles.
Sem mobilização e luta mudarão apenas superfície e retórica. Os poderosos regurgitam migalhas anestésicas, financiam guerras e não se incomodam com gerações futuras. Para eles, a palavra de ordem estruturante é “Dilacerai-vos uns aos outros!”. Vai ficar por isso mesmo?
Abraço. E coragem.