Quantos filmes belgas você já assistiu? Até uns dias atrás, eu não havia assistido a nenhum. Eis que surge Close, de 2022. Grande filme. Olhar sensível para assuntos de perturbadora atualidade. Parte da relação de amizade intensa entre dois meninos adolescentes, naquela fase que combina espanto, medo e delícia, e debate as consequências desastrosas dos preconceitos. Mais não posso falar, sob pena de dar spoilers. O filme está disponível na Netflix.
Foi inevitável associar cenas do filme com situações que vivemos numa sociedade infectada por desigualdades extremas, sectarismos e fundamentalismos religiosos. Um exemplo, para alguns chocante, acaba de vir do papa Francisco. Em reunião a portas fechadas com bispos italianos, ele disse que os seminários estão “cheios de viadagem”. Sei que, para efeito público, o pontífice adota uma linha suavemente liberal, que descriminaliza a homossexualidade (embora continue considerando-a pecado; não entendo a lógica “perdoa-se o pecador, não o pecado”). A portas fechadas, no entanto, parece que suas camadas inconscientes afloram e triunfa o preconceito. Não é caso isolado de dupla face, mas a visibilidade papal deixa tudo mais grave.
Tenho conversado bastante com gente amiga sobre os preconceitos em geral. Racionalmente, somos todos antirracistas, pelo respeito às diferenças e entre os gêneros. Salve nós. Ocorre que minha geração foi educada em ambiente carregado de desconfiança, às vezes desprezo, por vários grupos sociais. O diferente era visto como ameaça a valores que constituíam família e relações sociais. Esta formação, que combina preconceito de classe, ignorância e otras cositas más, cobra um preço. Às vezes, nossas placas tectônicas se movimentam e os preconceitos mais escondidos, mais negados, se manifestam. Entre risos debochados, seremos então capazes de ofender negros, homossexuais, judeus, árabes, estrangeiros e muitos mais. Não se ofenda, diremos sem constrangimento, é apenas brincadeira…
Vou citar dois exemplos, que mostram como tudo isso está espalhado, sem poupar gregos nem troianos. O ano era 1957. Em carta para a irmã mais nova, comentando que outras pessoas estavam em situação pior, ele escreveu: “Mas não há de ser nada. Conheço gente que tem filho cego, veado, ou que são cegos ou veados eles mesmos”. “Ele” é Vinícius de Moraes. O Poetinha, tão progressista na política e criativo nas letras, reproduz a visão do seu tempo. Dissesse isso hoje numa rede social, estaria lascado. Digo, lacrado. Direto para as galés.
Início de 1925. Num giro pela América do Sul, o cientista famoso foi encontrar-se com Aloysio de Castro, chefe da Faculdade de Medicina do Brasil. Sabem o que escreveu sobre o doutor brasileiro? “Legítimo macaco”. Antes da viagem, havia reclamado por carta: “Não tenho vontade de encontrar índios semi-aculturados usando smoking”. O homem de ciência era Albert Einstein. Ele mesmo vítima de preconceito antissemita na Alemanha, foi, anos mais tarde, enfático militante pelos direitos civis dos negros nos Estados Unidos.
Por que dei estes exemplos? Ao contrário que prega a cultura tribalista e raivosa tão em voga atualmente, oscilamos, variamos, revemos, reafirmamos. Somos organismos em movimento, complexos, muitas vezes contraditórios. Não é à toa que subo nas tamancas quando acompanho as tentativas de sanitização de livros clássicos (feliz expressão do diplomata Alexandre Vidal Porto). Apagar determinados termos e conceitos destes textos, considerados “sujos”, elimina o direito de leitores e ouvintes conhecerem o que se pensava em outros tempos e, a partir daí, assumir posições esclarecidas. Esta censura não educa, apenas esconde.
Não conheço fórmula para acabar com as discriminações. Aliás, não existe bala de prata para isso. Minha convicção é de que não haverá solução duradoura enquanto a sociedade continuar dividida em classes, legitimando o domínio econômico e a hegemonia das subjetividades de certos grupos. Estas disparidades alimentam, e muitas vezes criam, visões deformadas sobre os que não estão “em cima”. Não digo que numa sociedade pós-capitalista todos os preconceitos seriam automaticamente extintos. Não há como subestimar as raízes dos preconceitos, alguns deles multisseculares. Apenas imagino que a mudança para uma sociedade que valorize e consagre radicalmente a igualdade em todos os níveis criaria melhores condições para não demonizar o Outro. Lutar em terreno menos bloqueado já seria um bom início.
Abraço. E coragem.