Início dos anos 1990. Minha filha precisava fazer uma pesquisa escolar sobre esquimós e batia cabeça na pobreza de fontes bibliográficas. Tentei ajudar. A internet ainda era jovem criatura e modestos os mecanismos de busca. Apelei para o ancestral do Google, cujo nome esqueci e hoje deve ser verbete em alguma nuvem que nunca se vê. Abriram-se as portas do Nirvana. Lá havia tudo sobre esquimós, cuja palavra significa “aqueles que comem o peixe cru”. Nada a ver com os sashimis do japa da esquina. Vivendo em ambiente hostil e sem acesso a equipamentos de conservação de alimentos, os primitivos esquimós pescavam e comiam imediatamente o que vinha em anzóis e arpões.

Aquela foi uma época de rápida transição tecnológica. Os computadores entravam velozmente para a lista dos eletrodomésticos e a linguagem coloquial incorporava o dialeto internetês. Os correios perdiam espaço para a comunicação instantânea dos e-mails. Aquilo tudo era muito mais voraz e desequilibrante do que a relativamente lenta introdução das máquinas de calcular no cotidiano, processo que comecei a viver na faculdade. Os poucos donos das maquininhas de bolso eram, no início, tratados a pão-de-ló.

Passados mais de trinta anos, os monitores e telas em geral invadem todos os domínios, com consequências cada vez mais preocupantes. Novas gerações de equipamentos se sucedem em ritmo alucinante e a cultura da novidade infinita – e vazia – cria fanáticos viciados. Observo a molecada lendo pouco, confinada dentro de casa e dedicando cada vez mais tempo a celulares e seus satélites de luz azulada. Aonde isso vai parar? Que tipo de gente o ambiente eletrônico produz? Um artigo do doutor Daniel Becker deu régua e compasso a estas indagações.

O pediatra cita extensamente o psicólogo social Jonathan Haidt, da New York University, estudioso das repercussões do uso abusivo de celulares sobre a infância e a adolescência. O que encontrou é aterrador. Não dá para falar de todos os aspectos, mas vou destacar alguns.

A dedicação obsessiva aos celulares e às redes sociais leva a infância ao que o doutor Becker chama de múltiplo exílio. De seu corpo, que tem os movimentos empobrecidos; do seu território durante séculos, ou seja, das interações ao ar livre, do contato com a natureza; da socialização com seus pares, essencial para criar um senso de coletividade; dos estímulos que ensinam, pelo contato físico e emocional, a entender a complexidade das relações humanas; do sono reparador, substituído por jogos hiperestimulantes, projetados para induzir ao vício.

Depois de 2010, quando começa o salto geométrico em direção às telas de natureza vária, há um crescimento notável de casos de automutilação, depressão e suicídio em crianças e adolescentes. Uma correlação sólida entre estes fatores foi provada.

Tudo o que acontece neste mundo virtual é acelerado. Nos Estados Unidos, os adolescentes ficam, em média, sete horas diárias usando celular. Recebem cerca de 15 notificações por hora todos os dias, numa demanda caudalosa e estressante por respostas. Descobri que determinados serviços de streaming oferecem a opção de acelerar de duas a quatro vezes a velocidade dos vídeos. Para muitos jovens, ficou insuportável acompanhar histórias em tempo real. É tudo o oposto da leitura de livros, que exige introspecção, paradas para absorver conteúdos e eventual revisão de passagens já lidas, e audição de música, exercício prazeroso que não se esgota em poucos segundos.

Agora, chega ao picadeiro a Inteligência Artificial, ainda com cheiro de placenta, mas com potencial devastador nada desprezível. Já existe uma ferramenta que clona voz com simples amostra de 15 segundos de qualquer pessoa. Duas empresas desenvolvem IA que seja capaz de “raciocinar”. Na guerra, algoritmos definem listas de alvos com base apenas em dados gerais fornecidos por inteligência militar. Autorizações para “eliminação”, com efeitos devastadores, passam a ser quase automáticas. O Anjo da Morte está com agenda lotada. Stuart Russell, uma das maiores referências em inteligência artificial, fez a pergunta-chave: “Como manter para sempre o poder sobre entidades (sistemas que usam inteligência artificial) que são mais poderosas que nós mesmos?”.

Enquanto o chão ferve sob os pés humanos, leio que, no Brasil, quase 10% de pessoas acreditam que a Terra é plana. Ciência pra quê? Informação onde? Junto as peças e visualizo o simpático robô do seriado Perdidos no espaço. Vejo-o agitando os braços mecânicos à moda do biruta de aeroporto e avisando, aflito: Perigo! Perigo!

Abraço. E coragem.