Gosto das crônicas do angolano José Eduardo Agualusa. Especialmente quando sua filha Kianda, de 5 anos, é a musa inspiradora. Criança sempre desconcerta, dribla, inventa, implode datas vênias.

Em texto recente, Agualusa contou uma conversa que teve com Kianda sobre o que é alma. Isso mesmo, assunto nada uni-duni-tê. A pequena quis saber o que significava dizer que um lugar tem alma. Descontando os religiosos raiz, ninguém tem a resposta na ponta da língua. Agualusa não fugiu à regra, e devolveu o assunto para a filha.

Sabes o que é alma?, indagou. A resposta: A alma é uma luz muito pequenina escondida no coração. É o que continuamos a ser depois que deixamos de ser… Caramba, pensei, essa molequinha passou batida pela Peppa Pig e pelo Pateta.

Tentei me intrometer na conversa. À distância, sem pedir licença, mas oferecendo em troca memórias e olhares curiosos. Minha avó materna usava com parcimônia uma expressão em ídish: guite neshume. Ao pé da letra significa boa alma. No entanto, há mais sustança nesta sopa. Pouca gente se enquadrava no perfil do gente boa, do disponível para conversar e aliviar o peso de exílios forçados, desassossegos e rotinas duras, do que oferecia afagos a quem mal conhecia. Do que abraçava tanto até doer de dorzinha gostosa. Um Jeremias, o Bom, intergaláctico.

Acho estranha a imagem de um imenso almoxarifado, de onde são retiradas almas virgens e sopradas em matérias inanimadas. Estou falando de certas crenças religiosas. Quais seriam os critérios da seleção? Haveria uma oficina, devidamente autorizada, para recauchutar sopros defeituosos? Prazo de garantia? Como o dono tem paradeiro desconhecido, não existe balcão de reclamação. Em mistério tão denso e processo tão categórico, cabe a poesia, suave desmanchadora de certezas. Mario Quintana dizia que “alma é essa coisa que nos pergunta se a alma existe”. Ele, como nosotros, jamais encontrou o endereço do estoque nas Páginas Amarelas.

No poema Te quiero, Mario Benedetti nos garante que, no amor, “en la calle, codo a codo, somos mucho más que dos”. É assim a matemática da vida: não obedece a linhas retas de almas únicas. Tenho certeza de que, dentro de mim, há uma assembleia permanente de almas. Uma confusão dos diabos. Há tempestades e secas, grupos que buscam hegemonia permanente, passados disputando privilégios, conchavos, idiomas que se cruzam, o bloco das ansiosas e das imprescindíveis silenciosas. O presidente da mesa, eu, ora essa!, pode até se exasperar, mas no final conforma-se e segue o conselho do Chico e do Caetano: A gente vai levando.

A hipótese de alma única, aquela que a Kianda supõe se esconder no coração, é confortável (sem assembleias), mas não vai longe. Há dias em que a alma vencedora pede cantatas de Bach, outros em que o clima está mais para quartetos de cordas de Schubert. Tempos de Elizeth Cardoso, momentos de Cássia Eller. Sede de Woody Allen, fome de Bertolucci. Clima ora para chanchada, ora para Assalto ao trem pagador.  A assembleia tem um velho caso de amor com a vida e esta, mutante, oferece cardápio variado.

Não acredito que exista a tão citada alma de um povo. Como é possível encaixotar multidões de desejos e olhares numa única embalagem? Acho possível, no entanto, imaginar a alma de um lugar. Penso logo no meu escritório, que, mesmo silencioso, comunica momentos diferentes todo dia, cada qual desfiando pedacinhos desta alma. A foto emoldurada do The Who, presente da irmã, o cartaz republicano espanhol convocando resistência antifascista, o livro censurado oferecido por um livreiro corajoso durante a ditadura, o CD da Jacqueline Du Pré comprado num camelô improvável, o mamulengo de Juazeiro do Norte, o dicionário de ídish evocando leituras de Scholem Aleichem. As memórias, seus sons e imagens, são a alma do lugar, que estará sempre em construção. Como eu.

Abraço. E coragem.