A todos os que resistiram ao golpe civil-militar de 1964 e à ditadura que se seguiu a ele
Praia do Flamengo, 132. Ali funcionou por quatro décadas a sede da União Nacional dos Estudantes (UNE) e da União Brasileira dos Estudantes Secundaristas (UBES). Mais do que representação cartorial do movimento estudantil, foi o epicentro de notáveis iniciativas culturais e formação de quadros que atuaram na vida política nacional. Naquele prédio nasceu o CPC – Centro Popular de Cultura, cujo projeto generoso era levar cultura ao povo onde fosse possível. Teatro nas ruas, portas de fábricas, palcos modestos em bairros periféricos. Oduvaldo Vianna Filho, Cacá Diegues e Ferreira Gullar, entre outros, militavam lá. José Serra, presidente da UNE eleito em 1963, esteve no palanque ao lado de Jango no comício da Central, em 13 de março de 1964. Conclamou a estudantada a preparar uma greve geral para protestar contra o golpe que estava em marcha. Denunciou a “direita fascista” e os governadores que apoiavam a articulação golpista.
Minha mãe, assistente social, trabalhou na UNE no início dos anos 1960. O Menino acompanhou sua luta, enfim vitoriosa, para vencer a resistência machista do Grande e “trabalhar fora”. Mulher compartilhando o sustento da família era uma ousadia e tanto naquela época. Ser “do lar” era cláusula pétrea para as mulheres na cartilha masculina dominante. Dona Lilia, sem o perceber, foi uma desbravadora.
Lembro-me muito pouco daquela fase. Lilia me levou algumas vezes para conhecer o local onde trabalhava. No prédio estudantil, ganhava blocos de papel, fórmula garantida para cativar-me. Pré-adolescente, já era viciado naquelas folhas em branco, sedutoras, a chamar-me para inventar histórias e desenhar impossíveis desfechos. Em imagens embaçadas, oníricas, ouço um show que assisti no pequeno auditório local. Diziam que era uma turma boa que vinha das Gerais. Milton? Tiso? Guedes? Será? Vai saber. A imaginação e o desejo não têm limites.
No primeiro dia após o golpe de 1964, uma horda de vândalos, excitados pela furiosa maré anticomunista, depredou e incendiou as instalações do prédio. Cena digna da barbárie nazista e reveladora do caráter antipopular da quartelada. A classe média, patusca de marré deci, aplaudiu os piromaníacos. Sobrou uma carcaça enegrecida pela fuligem. Começava a República dos Generais e seus cúmplices civis. Um Festival de Besteira e Truculência que assolou o país por 21 anos, banhado em sangue e dor.
Estive na ABI, poucas semanas atrás, no evento que lembrou o 60º aniversário do Comício da Central. Já na saideira, dão a palavra para um venerável senhor de cabelos brancos. Fez questão de levantar-se sem ajuda e suas palavras porejaram História. Era Ivan Cavalcanti Proença, 93 anos, capitão do exército na época do golpe. No meio de sua intervenção, aproximou-se Victória Grabois, uma das fundadoras do Grupo Tortura Nunca Mais/RJ. Contou que aquele homem era um herói. No dia seguinte ao golpe, um grupo paramilitar, armado com metralhadoras, revólveres e bombas de gás lacrimogêneo, cercou 300 estudantes na Faculdade de Direito, no Rio. A invasão parecia iminente, a tragédia batia na porta. Pois o capitão Proença enfrentou os milicianos e, depois de momentos de discussão tensa, estes retiraram-se. Os estudantes saíram em segurança. Salvou nossas vidas, disse uma emocionada Victória, que estava na Faculdade. O ex-capitão foi ovacionado.
Incêndio criminoso na UNE, brutalidade, ódio, perseguições de todos os tipos. Carne e ossos da ditadura. Cerca de 6.600 militares, de sargentos a generais, foram punidos, torturados e perseguidos pelo regime. Muitos não tinham qualquer envolvimento político, eram apenas legalistas. Militantes de coloração vária, sindicalistas, operários, intelectuais, políticos oposicionistas, jornalistas. Todos viveram o inferno da censura, das ameaças, da prisão, do exílio, do assassinato. É vital manter viva a memória daqueles tempos. Depois de 60 anos, a sociedade brasileira ainda não completou o balanço da ditadura. Os criminosos que agiram a serviço do Estado estão por aí, gozando de uma impunidade vergonhosa. As famílias das vítimas ainda reclamam justiça. Não ajuda em nada o silêncio proposto pela presidência. Ao contrário. É antipedagógico e negador da política como instrumento fecundo para se compreender a realidade. 1964, em muitos aspectos, ainda não acabou.
Abraço. E coragem.
Jacques