Era 1984. A ditadura civil-militar já respirava por aparelhos, mas tinha força suficiente para dilatar um pouquinho o prazo de validade. Neste clima, Chico Buarque e Francis Hime compuseram uma espécie de samba-enredo que, lambendo as feridas, fertilizava a esperança do que estava por vir. Lá pelas tantas, diz a letra: Num tempo/Página infeliz da nossa história/Página desbotada na memória/Das nossas novas gerações. Há 60 anos, portanto, nossos luminosos artistas já levantavam a bola da memória histórica. Ou da desmemória.

Às vésperas do golpe de 1964 completar seis décadas, a triste convocação para uma amnésia oficial veio de um ex-sindicalista metalúrgico atingido pela repressão d’antanho. Em entrevista à Rede TV!, o presidente da República disse que “64 já faz parte da história(…) Eu não vou ficar remoendo e vou tentar tocar esse país pra frente”. No primeiro momento, não acreditei que Lula tivesse cometido essa barbaridade, especialmente usando argumentos medíocres. Justificou sua posição lembrando que generais de hoje eram crianças ou sequer nascidos naqueles tempos sombrios. Bem, eu era um pré-adolescente em 64 e a ditadura, que durou 21 anos, marcou em brasa toda a minha geração. E daí? Minha idade diminuiu o estrago? Certidão de nascimento não conta histórias, não cancela responsabilidades, nem dimensiona traumas e pesadelos.

Vejam vocês que ironia cruel. Em maio de 2020, a Viúva Porcina, claramente surtada, sorria para as câmeras e regurgitava: “Fiquem leves. Não quero arrastar um cemitério de mortos nas minhas costas. Vamos ficar vivos, por que olhar para trás?”. Lula e Regina Duarte de mãos dadas, propondo não olhar para trás. Dói na alma, e não é pouco. Como disse Conrado Hübner Mendes, professor da USP: “Como Regina, Lula não se dispõe a entender que esse passado é sobretudo presente e futuro, não só para os filhos e filhas de pais mortos por generais, mas também para a democracia que venceu as eleições por 1% dos votos. Não é revanche, mas construção de horizonte. Nem mesmo o bolsonarismo essa democracia venceu”.

Faço questão de desobedecer a sugestão inconsequente do Lula. Vou lembrar, contar, testemunhar, escrever, silenciar com expressividade, cantar o canto da memória, denunciar, o que foi a República dos Generais e seus capangas civis. Criminosos que, em grande parte, ficaram impunes. É um dever e um compromisso com as novas gerações, para que não sobre página desbotada na memória.

Estou convencido de que a história dos anos de chumbo jamais será integralmente contada. É um interminável inventário de proibições, censura, violências e perseguições que destruíram a vida de milhares de brasileiros. Como descrever o cotidiano de medo? Como aferir o choque da informação de que um amigo havia desaparecido? Como conviver com o fantasma do frei Tito, que não suportou a tortura aplicada pelo infame delegado Fleury e acabou matando-se no exílio? Como entender demissões “políticas”? São heranças que não se pode eliminar com canetada, arranjos de cúpula ou desejo de “pacificação”.

O que temem as Forças Armadas? A mesma pergunta foi feita em 1966, quando a gorilada ameaçou prender Nara Leão. O que fez Nara? Disse, em entrevista à imprensa, que “os militares podem entender de canhão ou de metralhadora, mas não pescam nada de política”. Naquela época, palavras divergentes eram consideradas ameaça à segurança nacional. Medo das contradições, dos argumentos não hierarquizados. O lema dos ditadores sempre foi: Roma locuta, causa finita. Quando falam os quartéis, todos abaixam a cabeça. Foi assim por mais de duas décadas. E o Luiz Inácio prefere passar uma borracha. Ora, faça-me o favor!

A corporação que hoje conspira contra a democracia tem longa tradição golpista. Militares tramaram em 1954 (o suicídio de Getúlio abortou o golpe), 1955 (para impedir a posse de Juscelino), 1961 (tentaram bloquear a posse de Jango depois da renúncia de Jânio) e 1964. Prontuário gordo, obsceno, persistente.

Até quando a sociedade brasileira vai sustentar uma casta armada que se acredita acima das leis, não se subordina ao poder civil e faz política nas sombras? Pergunto novamente: o que temem os militares? Qualquer sociedade democrática aceita com naturalidade o choque de opiniões diferentes. Não é o que mostra a tradição do segmento militar, que, no Brasil, tem mostrado uma vocação ditatorial contínua.

É possível resistir? Certamente. Sempre. Resistência tem múltiplas faces. Mesmo em condições adversas, no limite do possível, dá para encontrar formas de resistir a situações inaceitáveis. Cada um encontrará a sua. Neste momento, minha forma de protestar contra o falso apaziguamento, que não passa de capitulação disfarçada de concórdia, é convidando cada um dos que me leem a passar adiante as histórias da noite que se abateu sobre o Brasil por 21 anos. Conhecimento é ferramenta de luta.

Nos 60 anos do golpe de 1964, gritemos: Não esquecer, não perdoar! Ditadura nunca mais!

Abraço. E coragem.