A arte de viver da fé/só não se sabe fé em quê (Herbert Vianna)

Chegando perto da Colônia de Pescadores, no Posto 6, ouvi a batucada ao lado de um trio elétrico. Lá se vai embora meu precioso silêncio, pensei. Paciência, é carnaval. Um pouco mais adiante, a surpresa. No miolo do furdunço, um estandarte identificava o comandante da festinha. Era a Bola de Neve Church, escrito assim mesmo. Mais um braço do neopentecostalismo. Pesquisei o assunto. Tem o discurso de sempre e iscas moderninhas para pescar adesões. Prancha de surfe em lugar do púlpito (não exagero, é assim mesmo), nos cultos o pastor veste roupas descoladas (antigamente chamávamos de prafrentex).

A explicação para tantos “exotismos” é simples. Há uma enorme disputa de mercado de fiéis entre as várias denominações religiosas. Pesquisa recente do IBGE mostrou que, no Brasil, o número de estabelecimentos religiosos é superior aos de saúde e ensino somados. A maior fatia deste mercado está com os evangélicos. Em 1990, seus templos eram 17.033. Em 2019, saltaram para 109.560.

A expansão não significa, em si, uma notícia ruim. Quem sabe representaria uma tendência introspectiva, de espiritualidade serena? Não parece ser assim. O que se vê, em geral, é o desenho de um projeto de poder em curso, já descrito em livros e fincado em dois pilares principais: conquista de territórios na política (a Bancada da Bíblia é apenas um deles) e promiscuidade entre religião e Estado (representada pela tentativa de impor valores conservadores/reacionários para toda a sociedade e conseguir benesses para os templos). De uma forma geral, quando Estados nacionais se curvam a grupos religiosos, de todos os perfis e coturnos, os resultados são lamentáveis.

Não sou neutro neste assunto. Sei como as religiões extrapolam o terreno da fé e invadem a cultura dos povos. Vejo isso em certas expressões cotidianas. Mesmo um descrente como eu, às vezes me flagro, quando espantado, exclamando “meu deus!”, “nossa senhora!”, “se deus quiser!”, “só deus sabe!”. É o pedágio que pago por séculos de influência clerical. Influência assentada em mitos que, no máximo, têm algum valor poético. Não têm a menor fumaça de realidade. Chega a ser cômico ver adultos achando que a vida surgiu na Terra num passe de mágica, em ato de vontade monocrática, negando a beleza dos processos naturais de evolução e desconhecendo o papel do acaso na construção do nosso planeta e em nossa trajetória vital. O que dizer dos que acreditam que o Universo foi criado há 5.783 anos?

Com base em dogmas e sistemas discricionários de premiação/punição, religiosos tentam invadir a vida privada e impor pautas repressivas de costumes. Governos covardes, intimidados por lobbies religiosos, evitam debater temas como aborto, métodos contraceptivos e eutanásia. O direito de escolher o momento de morrer é ofendido e ameaçado pelas falanges da fé. Se alguém decide morrer, acabando com um sofrimento físico ou psicológico insuportável, é condenado ao inferno por afrontar o “tempo de deus”. Na tradição judaica, o suicida paga a coragem de comandar seu tempo de vida sendo enterrado junto ao muro do cemitério. Lugar discriminado, dos desonrados.

Os retrocessos que a religião promove estão bem retratados no que acaba de acontecer durante o carnaval na Bahia. Baby do Brasil, que era muito mais interessante quando ainda se chamava Baby Consuelo, resolveu fazer proselitismo num trio elétrico. Esqueceu o axé e regurgitou: “Todos atentos porque entramos em apocalipse. O arrebatamento tem tudo para acontecer entre 5 e 10 anos”. Despirocou geral. A cegueira psicopatológica não lhe permitiu ver que o apocalipse já anda por aí faz tempo. A própria existência de gente como ela, em estágio de fanatismo agônico, é um dos sinais. Outro é o gasto militar global, que, em 2023, foi o maior desde a 2ª Guerra Mundial. Superou o PIB do Brasil. Guerras dão lucro, não vão acabar. Mais outro. Uma pessoa morre de fome a cada 4 segundos no mundo. E vai seguindo a procissão, a lista não teria fim. No nosso país, há cerca de 2 milhões de crianças no mercado de trabalho. Infância destroçada. Nas zonas urbanas brasileiras, mais de metade das pessoas sobrevivem com algum grau de insegurança alimentar. O que falta para a transição do Purgatório para o Inferno? É o caso de lembrar de um filme antigo e sombrio: Apocalypse now!

Abraço. E coragem.