Tudo começou com um pequeno vídeo do Luiz Antonio Simas, falando sobre carnaval. Sou veterano tiete do Simas, craque sobre cultura carioca e outros babados. Sem abrir mão dos merecidos salamaleques de praxe, ouso discordar de uma parte do que ele disse.
Simas fala dos aspectos transgressores do carnaval, que seria uma ameaça para o caráter individualista e discriminatório da sociedade brasileira. Não tem como discordar de que foi assim que funcionou durante um tempo. Na origem, deve ter sido assustador para a elite branca, de mentalidade europeia-escravocrata, ver os negros recém-libertados dançando nas ruas, sem respeitar regras ditadas pela moral vigente. Com o passar dos anos, entretanto, este panorama mudou.
Vou dar um salto no tempo, mas antes conto uma pequena história. Nos anos 80, trabalhando no BNDES, estava em Recife acompanhando um projeto industrial. Conversando com um dos engenheiros da empresa, ele me contou um surpreendente pacto matrimonial. Todo sábado de carnaval, fantasiava-se de mulher (quem sabe uma odalisca?), despedia-se da esposa e partia para a esbórnia pernambucana. Só voltava para casa depois de desfilar no Bacalhau do Batata, em Olinda, na quarta-feira de cinzas. Vestia, então, seu terno e ajeitava a normalidade. Durante quase cinco dias, ninguém era de ninguém e a vida seguia. O carnaval suspendia o tempo e congelava certas convenções. Uma boa, e quase sempre inocente, catarse.
Depois de passar pela ascensão e queda de corsos, das sociedades carnavalescas, dos bailes majestosos do Teatro Municipal, do Quitandinha, do Glória e do Copacabana Palace, dos blocos do eu sozinho, o carnaval carioca parecia renascer com o patrocínio da máfia, digo, dos bicheiros às escolas de samba. Os desfiles foram se transformando gradualmente em ricas e espetaculares marchas cronometradas, em prejuízo dos sambas. A Unidos do Porto da Pedra, por exemplo, vai marchar este ano com uma alegoria de altura equivalente a um prédio de sete andares. Os caros ingressos no Sambódromo, tal como acontece no Maracanã, afunilam socialmente os espectadores. Geraldinos e arquibaldos foram expulsos da festa. Nem quero entrar na polêmica sobre o polimento da imagem dos contraventores através das escolas.
Ah, mas carnaval não se limita às escolas de samba. Verdade. O que, no entanto, observo nos meus arredores? Multiplicam-se os chamados megablocos, com centenas de milhares de participantes, puxados por celebridades e patrocinados por grandes corporações. Neles se tocam funks, música sertaneja, sofrências, música pop. Dizem que às vezes pinta até um sambinha. Parecem bailes a céu aberto, com grande apelo de mercado. O capital não descansa em fevereiro. Em São Paulo, desconfio que também no Rio, os ambulantes são proibidos de vender cervejas de competidores do patrocinador do bloco. Livre concorrência é isso aí. Nada contra bailes funk ou paixão por duplas sertanejas, há gosto para tudo, mas o que isso tem a ver com carnaval? No rastro destes cortejos, lagoas de urina e destruição voraz de equipamentos urbanos.
Aqui e ali, sobrevivem alguns blocos orgânicos, um ou outro bate-bolas, grupinhos de mascarados e homens vestidos de mulher. Não há mais nada, rigorosamente nada, de contestador, revolucionário, no reinado de Momo. O máximo de ousadia, no fundo muito careta, é a discussão da nudez pública, em geral praticada por figuras notórias ou em busca de notoriedade fugaz. Este ano, os tapa-sexo estão no centro da coisa. Sem duplo sentido. Gancho, calcinha de tule simples ou dupla, calcinha illusion, um cardápio extenso para fantasiar genitálias. Esquindô, esquindô.
Nunca me liguei em carnaval. Desde quando, sob protesto silencioso, me colocaram um saiote de Nero e colaram esparadrapo no rosto para simular pintura de índio sem apito, passei a estranhar o ritual. Gostava de algumas marchinhas, do frio do éter na pele jogado por lança-perfume, das chanchadas da Atlântida que faziam o pré-lançamento de marchinhas do carnaval seguinte (hoje, rio um bocado quando as revejo e confirmo sua ingenuidade mambembe). Acho execrável a censura que se faz a clássicos das marchinhas e a fantasias que “desrespeitam” grupos sociais. O fato de alguém se “vestir de odalisca” ou colocar um barrigão falso, por exemplo, não torna o carnavalesco um perverso depreciador das mulheres ou carrasco de obesos. Fantasia é exatamente o que o nome diz: imaginação, sonho. Como no antigo código de censura que vigorou por décadas em Hollywood, surgiram as novas vestais para dizer o que pode e o que não pode cantar e vestir.
Estou em pleno retiro, refugiado no bunker doméstico. Para quem vai para as ruas, boa sorte e alalaô pra todos.
Abraço. E coragem.