Pensem que isto aconteceu:/eu lhes mando estas palavras (Primo Levi)

O vento gelado cortava a pele naquele 27 de janeiro de 1945. Parecia mais um dia rotineiro que nascia no campo da Morte. Dois prisioneiros estavam próximos do arame farpado que protegia o portão, quando ergueram os olhos. Na pequena colina, a uns duzentos metros de distância, tiveram a impressão de ver cavalos, o vapor saía denso de suas narinas. Prestaram atenção, podia ser uma miragem, das muitas provocadas pela fome e pela dor.

Sim, lá estavam quatro cavaleiros, metralhadoras nas mãos. Pareciam desconfiados do que viam. Aos poucos, bem devagar, foram se aproximando. Sem dirigir palavra, amarraram cordas no portão do campo, acionaram os cavalos e o derrubaram. Dentro, os poucos viventes, quase espectros, cercados de corpos em decomposição, estavam paralisados. Era possível aquilo? Não mais chicotes, não mais fuzilamentos, não mais torturas, não mais o Fim a cada minuto. Liberdade. Alguém se lembrava do que era isso?

Pode parecer roteiro de um filme, mas é baseado na descrição, feita por Primo Levi, dos momentos que antecederam a libertação dos últimos internos do campo de extermínio de Auschwitz. Ela aparece no livro A trégua, que recebeu uma versão cinematográfica primorosa em 1997, dirigida por Francesco Rosi. A cena dos cavaleiros do Exército Vermelho chegando em Auschwitz é inesquecível.

O turinês Primo Levi, guerrilheiro antifascista na Itália, sobreviveu em Auschwitz ao projeto de extermínio dos judeus europeus, a Solução Final organizada pelos nazistas e aprovada na Conferência de Wansee, em janeiro de 1942. Só em Auschwitz, na Polônia, foram assassinadas cerca de 1,1 milhão de pessoas, a grande maioria judeus. Usavam-se métodos industriais para aumentar a produtividade da matança. Para tanto, os carrascos empregaram o gás Zyklon B, produzido pela indústria alemã IG Farben. Os prisioneiros perdiam seus nomes, substituídos por números. Como gado. A desumanização fazia parte do projeto.

Os planos de eliminação dos sub-homens, os não-arianos, estão minuciosamente descritos por Hitler no Mein Kampf. Judeus e comunistas estavam na lista de prioridades do chefão nazista. A Operação Barbarossa, codinome da invasão da União Soviética em 1941, não foi apenas para conquistar territórios e recursos naturais. Tinha objetivo explícito de “limpar” o terreno, destruindo metodicamente cidades, vilas e aldeias, e aniquilar comunistas a granel. O resultado foram mais de 20 milhões de mortos. Como disse Levi, era o clímax de uma concepção de mundo.

Ao voltar para a Turim natal, Primo Levi reassumiu sua profissão. Era químico. Simultaneamente, começou a contar tudo o que viveu durante a guerra. Sua obra não é apenas uma catarse, uma tentativa de expurgar os fantasmas que o assombraram no campo, onde conviveu com os instintos mais bestiais da natureza humana. Tem também uma intenção pedagógica (sem cair no panfletarismo). Conhecer para pensar, pensar para lutar contra as várias formas que assume o anti-homem.

Num belo artigo escrito para a Folha de São Paulo em 2021, Jaime Spitzcovsky lembrou de três militares do Exército Vermelho que combateram o nazismo e, depois da guerra, dedicaram-se a denunciar, através de conferências, livros e depoimentos, o negacionismo do Holocausto e o ressurgimento do nazismo e do fascismo. São o soldado David Dushman, o general Vassily Petrenko e o tenente Ivan Martynushkin. Através deles, homenageio todos os que se levantaram contra o totalitarismo nazifascista.

A ONU instituiu 27 de janeiro como o Dia Internacional em Memória das Vítimas do Holocausto. É importante lembrar os acontecimentos que levaram à matança sistemática de judeus e ao maior banho de sangue da história da humanidade. A extrema-direita está em franca ofensiva em nível mundial. Ela governa hoje a Itália, a Holanda e a Suécia. Fortalece-se na França e na Alemanha. Fincou as quatro patas na Polônia e na Hungria. Flexiona os músculos na Argentina e em Israel. No Brasil, lembram-se?, Roberto Alvim, secretário de Cultura do governo Bolsonaro, chegou a fazer um pronunciamento com trechos de um discurso de Joseph Goebbels, ministro da Propaganda da Alemanha nazista. A besta, infelizmente, continua no cio. À luta, pois.

Abraço. E coragem.