A todos os que resistiram e resistem contra os liberticidas.
Há um ano, estava num almoço de família. Já nas tratativas da digestão, alguém sugeriu dar uma olhada no noticiário da TV. Espanto! Cenas ao vivo de Brasília, multidão histérica invadindo prédios dos 3 Poderes, barbarizando tudo. Despoliciada, a área foi presa fácil de bolsovândalos. Era o primeiro ato do que pretendia ser a ponta de lança para um golpe de estado, que cancelaria as recentes eleições de 2022 e recolocaria o Burgomestre Fecal na presidência da República. A baixa adesão das Forças Armadas aos golpistas impediu a consumação do golpe. Até hoje aguardamos a identificação dos idealizadores e financiadores da aventura antidemocrática. A conciliação a qualquer custo, marca registrada do governo Lula, freia a necessária punição dos criminosos. Especialmente dos fardados, que continuam a assombrar a vida nacional.
Este ano lembraremos os 60 anos de outro golpe, o civil-militar de 1964, que depôs o presidente João Goulart. O movimento, articulado por setores conservadores da sociedade brasileira e estimulado/financiado pelo imperialismo norte-americano, impôs uma ditadura que durou 21 anos. Os Estados Unidos, cujos tentáculos sórdidos alcançaram outros países da América Latina (Argentina, Uruguai e Chile, entre outros), chegaram a mandar uma frota para a costa brasileira, em apoio militar aos golpistas (operação Brother Sam). O embaixador ianque, Lincoln Gordon, e o adido militar da embaixada, Vernon Walters, tiveram papel ativo na conspiração que derrubou Jango. É importante jamais esquecer este prontuário vil, manchado pelo sangue de muitos milhares de hermanos, quando os norte-americanos continuam com o discurso cínico de “paladinos da democracia”.
O golpe de 64 me pegou em início de adolescência. Os primeiros fios de barba faziam a entrada triunfal, quando aconteceu o chamado golpe dentro do golpe. Era 13 de dezembro de 1968. Os milicos, com seus cúmplices civis, baixaram o Ato Institucional número 5, fechando de vez as poucas frestas do regime. E vieram censura, intensificação da repressão, institucionalização da tortura, perseguição a todos os tipos de oposição. Passei parte importante da juventude sob este clima sufocante. Na faculdade, ermos do Fundão, a invasão fardada era arroz de festa (sem festa, é claro). Aos poucos, encontrei formas de participar da resistência. De todas elas, às vezes pequenos gestos, guardo cálidas lembranças e inabalável orgulho. Desde a inclusão de exemplos pouco ortodoxos nas aulas que dei na UFF até a construção de espaços sindicais renovados entre os profissionais liberais, todas enriqueceram minha experiência de vida.
É angustiante ver gente na rua, hoje, defendendo intervenção militar. Na melhor das hipóteses, estão mal informados. Não conhecem o que foi o cotidiano vigiado, o medo permanente, a dor pela prisão, tortura e assassinato de familiares e amigos, o exílio de dissidentes, a corrupção amordaçada pela censura implacável da imprensa. Hoje parece quase cômico, mas posso dizer que aprendi rudimentos de castelhano por causa da censura. A produção editorial era rigorosamente vigiada. Comecei a frequentar sebos e livrarias com importados da Espanha, México e países de fala castelhana. Depois de algum tempo, já lia com certa fluência os textos.
A ditadura brasileira espalhou-se como metástase pelo continente. No Chile, por exemplo, o embaixador Câmara Canto ajudou na articulação dos golpistas contra Allende. Depois do golpe, em 1973, a embaixada brasileira ajudou os carrascos pinochetistas a identificar brasileiros que moravam no Chile. Militares daqui assessoraram seus clones chilenos na prática de torturas. A digital brasileira está na gênese da Operação Condor, que uniu as ditaduras latino-americanas na perseguição multinacional de opositores.
Ao contrário de chilenos, argentinos e uruguaios, não superamos a ditadura de 64. Os criminosos que cometeram violências em nome do Estado não foram punidos. Alguns chegaram a ser celebrados no Parlamento, sem que isso provocasse indignação generalizada. Mantemos um temor reverencial aos fardados, que reproduz o terror que vivemos de 1964 a 1985. A casta que habita a caserna é um poder nada oculto.
Um ano do golpe abortado de 8 de janeiro de 2023. Sessenta anos do golpe civil-militar de 31 de março de 1964. O que aprendemos com eles?
Abraço. E coragem.