Nem unzinho. Onde estarão as bicicletas novas, as geringonças movidas a pilha, os revólveres a espoleta, as bolas à cata de craques instantâneos, as bonecas com rostos congelados? Era sempre assim todo dia 25 de dezembro, mas este ano nem sinal. Na imensa avenida, apenas adultos caminhando, indiferentes à paisagem de sempre.

O Menino, membro honorário dos sem-presentes no Natal, gostava de alguns símbolos da data, que não via como religiosos ou segregadores. O pinheirinho recheado com bolas coloridas fugia do cinza das existências classe média baixa dos vizinhos. Mais do que isso, chegou a acreditar que dava frutos embrulhados com papel e fita. Semente mágica à moda do João e o pé de feijão.

Ficava intrigado com uma pequena cena rural, de plástico barato, montada em torno de um bebê e adornada por bichos. Por que só aparecia naquela época do ano? Não daria para usar junto do Forte Apache e os soldadinhos de chumbo? Roteiro e tanto. Afinal de contas, não passavam de bonequinhos. Muito mais tarde, alguém matou a ingenuidade. Pensar daquela forma era pecado, podia dar em Inferno. Saí de fininho e desembarquei nas adultices.

O que não ganhava no Natal, podia receber de herança. Como a velha bicicleta do primo, sobrevivente do chão áspero das ruas tijucanas. Uma Hércules em estado sofrível, mas soberba no gesto da entrega e afinada nos pedais rangentes. Usada até desmanchar na esquina do tempo.

Às vezes, a colheita era mais farta. Como no bar-mitsvá, época em que chamavam o Menino de shein ingale. Dentuço, mas … vá lá. Grande expectativa. O ritual de passagem à maioridade religiosa era demonstração pública de pertencimento, chancela de uma escolha feita por e para adultos. Os presentes refletiam uma espécie de projeto familiar para o adolescente. Pensaram em jogos ou, sonho dos sonhos!, um Polioptikon? Que nada. Vieram prendedores de gravatas, abotoaduras e montes de livros “sérios”, a maioria sequer folheados. Houve uma exceção. Li Terras do sem fim, do Jorge Amado, sem ter o menor interesse pelas plantações cacaueiras do sul da Bahia. Estava interessado, hormônios explodindo, nas cenas eróticas que o baiano distribuiu à farta no livro.

Andei pensando naquele tempo. Tal como o Miguilim do Guimarães Rosa, devo ter bebido um golinho de velhice aos 13 anos. Vou além e trago ao palco Martha Argerich. A enorme pianista argentina (os hermanos estão muito acima de acidentes como Milei) conta que teve um professor, Vicente Scaramuzza, muito rigoroso. Certa vez, don Scaramuzza veio se queixar com o pai de Martha. “Essa menina é muito geniosa, não posso continuar”. “Mas ela só tem 6 anos!”, comentou, surpreso, don Juan Manuel. “Mas tem alma de 40!”, arrematou o professor. Muitas vezes foi assim que me senti. Renunciei a fases inteiras da vida, substituindo-as pela vontade ou pelas circunstâncias dos adultos. Desde sempre, ando à caça do que perdi, sem bússola ou mapa do tesouro. Aqui e ali, desenterro restos embaçados do que poderia ter sido. Nestes raros momentos, abraço Manoel de Barros e vou catar joaninhas num quintal imaginário. De pés descalços.

Por onde andarão as crianças que ganharam presentes de Natal e não saíram para tirar o selo ao ar livre? Talvez os presentes, fiéis ao espírito do tempo, não precisem de parceiros ou, se estes existirem, podem acioná-los por botões, alavancas, comandos de voz. À distância. Há uma tirinha da Mafalda em que ela aparece chutando pedrinhas, pulando numa perna só, passando um pedaço de galho na grade de um parque. No último quadrinho, pensa: “Às vezes, tenho nostalgia dos clássicos”. Esta geração não saberá o que é isso, pois desconhecerá a vida ao ar livre, fora de telas e programas virtuais. Talvez, num futuro remoto, consultando uma enciclopédia empoeirada, uma ovelha desgarrada descubra qual era o encanto do sol no rosto, da pelada, da multiplicação de olhos e abraços. Então, substituirá a expressão prematura de 40 anos pelo rosto curioso dos 6 anos. E sairá pedalando pela avenida Atlântica, easy rider sem jamais ter ouvido Steppenwolf.

Abraço. E coragem.