Nessa época do ano, o senso comum pede assuntos leves. De pesada basta a vida, vox populi. Aí é que está o busilis. Ou a porca torce o rabo. Não é nada fácil desligar o botão. O mundo gira, a Lusitana roda, e a gente continua pregado nos acontecimentos, sem direito a férias.

Vejam só. Enquete realizada pela Universidade de Harvard revelou que dois terços dos jovens norte-americanos entre 18 e 24 anos consideram que os “judeus” (assim mesmo, genericamente) são uma classe de opressores, que merece ser tratada como tal. Não é, apenas, déficit informativo. Assim fosse, seria muito fácil combater o antissemitismo. Bastaria uma educação humanista, intelectualmente honesta, para sufocar o preconceito. Ocorre que há, por trás da constatação da pesquisa, uma longa história de perseguições, agressões individuais e coletivas, mitos de natureza religiosa, farta literatura infame e ignorância estimulada por poderes constituídos. Fundamente arraigados no imaginário dos povos. Aí o bicho pega. É mais fácil desintegrar um átomo do que o preconceito, disse um certo Albert Einstein.

A notícia vem junto com o triste aumento de eventos antissemitas em muitas partes do mundo. Coquetéis molotov atirados contra uma sinagoga em Berlim. Estrelas de David pichadas em portas e fachadas de edifícios em Paris. Vandalização de cemitérios. Crescimento substancial de incidentes antissemitas em capitais europeias. No Brasil, não é diferente.

Ah, dirão os mais apressados, é resultado do que “vocês” estão fazendo em Gaza. Duplo erro. Este “vocês” não existe. Os judeus são um povo heterogêneo, onde cabem religiosos, ateus, múltiplas nacionalidades, direitistas, esquerdistas, sionistas, antissionistas, brancos, negros, humoristas, dramaturgos, gênios, canalhas, e por aí vai. Há instituições para todos os gostos, com opiniões frequentemente antagônicas. Dois judeus, três sinagogas, diz a velha piada. Além disso, e muito importante, o antissemitismo já existia muitos séculos antes do conflito Israel-Hamas. Às vezes discreto, subterrâneo, até envergonhado, outras explícito e violento. O que está acontecendo agora foi apenas um pretexto, a senha, para libertar o gênio da lâmpada. E ele não perde tempo.

Antes que me cobrem, faço dois esclarecimentos. Não considero necessariamente antissemitas as críticas a Israel. Muitos judeus fazem isso todos os dias, pessoal ou institucionalmente. Não raro de forma muito dura. Qualquer solução, se existir, para o conflito palestino-israelense, tem que passar pelo reconhecimento do Outro. Desumanizá-lo, ignorar que é um produto histórico, vai perpetuar o ciclo de violência. Neste sentido, a criação da West-Eastern Divan Orchestra foi exemplar. Idealizada pelo pianista e regente argentino-israelense Daniel Barenboim e o intelectual palestino Edward Said, a orquestra congrega jovens músicos israelenses, palestinos e de vários países árabes. Já se apresentou em Ramallah e, durante os ensaios na Alemanha, os jovens visitaram um campo de concentração nazista e depois compartilharam informações e sensibilidades. Aos poucos, terão a chance de dizer: eu Te conheço e reconheço.

Sou pessimista em relação à chamada solução de dois estados. Com a Faixa de Gaza transformada numa pilha de escombros, inabitável por muito tempo, e a Cisjordânia invadida por centenas de milhares de colonos israelenses, portando armas pesadas, protegidos pelo exército israelense e vivendo em assentamentos ilegais em constante expansão territorial, um Estado palestino nestas condições não passaria de uma farsa. Estes colonos sentem-se à vontade para praticar atos terroristas contra palestinos, destruindo plantações e equipamentos agrícolas e matando gente. A curto prazo, os fundamentalismos ganham popularidade, alimentando novas bombas relógio.

Não faço a menor ideia de como tudo isso evoluirá. Há muito ódio e ressentimento acumulados. Mesmo com várias iniciativas não-governamentais de quebra do gelo, o terreno para qualquer forma de entendimento entre israelenses e palestinos está cada vez menor. A pergunta que fica no ar: por quanto tempo será possível manter o status bélico, de horror e medo, de opressão e desespero?

Abraço. E coragem.