Leitor aflito escreve ao jornal, prevendo encrenca. Ele está certo. A prefeitura do Rio pretende transformar a área ao redor da Praça Xavier de Brito, na Tijuca, em “polo gastronômico”. Velha conhecida dos tijucanos, a também chamada Praça dos Cavalinhos é um espaço bucólico, despretensioso como deve ser um lugar que nada oferece além de silêncio e uns pangarés cansados pra garotada. Não fica longe de onde morou o Aldir Blanc e um certo Menino encolhido. O burgomestre alegrinho, como tantos de seus pares, não gosta. Prefere gourmetizar, bloquear calçadas com mesas e cadeiras, desentocar decibéis e liquidar a vida de algumas centenas de cariocas, reféns da agitação que está por vir. É o roteiro do derretimento metódico da cidade, que já vai longe na estrada. Ao som da batucada e gritos de bebuns.

Em entrevista de 2006 ao Globo, Chico Buarque, mesmo não sendo catedrático em nostalgia, lembrava que “ainda garoto, eu subia no Morro da Babilônia para soltar pipa e ver a paisagem lá do alto (…) Não havia hostilidade. Não havia o tráfico de drogas, que criou essa tragédia carioca”. Entendo o lamento do craque do Politheama. No último ano da faculdade, fui com um amigo ao Morro dos Tabajaras. Aquilo parecia uma vila rural, moleques batendo bola no chão de terra batida, vizinhos batendo papo sem pressa. Não chegamos a ver a Maria com lata d’água na cabeça. Hoje, adeus tranquilidade. O pessoal que mora perto é capaz de identificar as armas pelo som dos tiros que se disparam regularmente na favela.

Os sintomas do derretimento espalham-se por todos os lados e eras. Millôr Fernandes, em data não identificada mas certeiro, chegou a definir o Rio de Janeiro como “antiga cidade brasileira, hoje desaparecida”. No início dos anos 70, um deputado alemão, se não me engano ligado ao incipiente movimento ecológico, veio ao Rio. Visitando o canteiro de obras do futuro elevado da avenida Paulo de Frontin, ficou estarrecido. Disse que aquilo jamais seria permitido em seu país. Um monstrengo de concreto e asfalto, parido para beneficiar principalmente transporte individual, ficava a poucos metros de distância de milhares de residências, transformando-as em cavernas poluídas. Derretiam-se as noções mais elementares de convívio na cidade grande. Parte de um bairro ficou imprópria para a vida. E segue o ziriguidum.

Se a cidade é tão insensível com seus moradores, por que eles deveriam respeitá-la? Da ideia à prática. Depredação virou esporte popular. Aqui em Copacabana, há uma estátua do Drummond. O itabirano morava perto dali. Os óculos de bronze do poeta precisaram ser repostos 14 vezes desde a inauguração da estátua. O monumento ao general Osório, na praça Quinze, era cercado por um pesado gradil produzido a partir da fusão de canhões usados na guerra do Paraguai. Duas toneladas de metal. Em façanha digna dos bons ilusionistas, o gradil foi furtado. Imagine a operação de transporte disso! Lixeiras, coretos, bueiros, imagens de matérias variadas, nada escapa. O grande Cartola compôs uma canção, quase lamento, que dizia assim: Ensaboa, mulata, ensaboa/Ensaboa/Tô ensaboando. No Rio, parafraseio: Arrebenta, carioca, arrebenta/Arrebenta/Tô arrebentando. E roda a baiana.

Já fizeram desenho animado sobre o Rio no início dos anos 2010. Passarada deslumbrante, cenários pra turista ver. Agora, os bichos mais presentes na cidade são os cachorros. Provavelmente fruto da pandemia, que agravou problemas de solidão, muita gente adotou animais, especialmente cães. O resultado é que a cachorrada solta o verbo furiosa, neurotizada, sem controle dos donos indiferentes. Devem achar latidos sinfonias modernosas. Tem gosto pra tudo. Competem com frequentadores de bares (11ª praga bíblica) no quesito de infernização e derretimento urbano.

Durante a pandemia, pude ouvir, encantado, os pássaros que habitam as árvores que sobrevivem à poluição e aos maus tratos. Sem o barulho do tráfego, os bichinhos mostraram do que são capazes. Cheguei a perceber, será?, broncas de dona bem-te-vi com os travessos bem-te-vizinhos. Certo dia, uma rolinha, armada de graveto ameaçador, lascou um canto guerreiro contra seu cônjuge, que voltara de um galho suspeito e cheirando a alpiste escocês. Imaginação? Ora, pesquisadores descobriram que o canto de pássaros no auge da Peste ficou mais suave, em tons mais graves, com muito mais variação de voz. Sem a barulheira das cidades, o canto voltou a ser mais complexo, cheio de conteúdo. Mais interessante: parece que, sim!, os pássaros voltaram a se ouvir, e reagiram espalhando beleza. O cinza urbano, a incivilidade, os ruídos ensandecidos e desrespeitosos, nos fazem desconectar ainda mais das maravilhas que nos cercam e permanecem invisíveis.

O Rio, que uns ingênuos disseram que era de luz, envelhece mal. Trata mal gentes e bichos, memórias e flores, sons e silêncios. Termino com o Chico. Na mesma entrevista que mencionei no início, ele disse que “ser carioca era motivo de orgulho, era covardia. Agora não é mais… E talvez por isto seja um bom momento para me afirmar carioca”. É nesta estranha, mas afetuosa, dialética buarquiana que me banho, e vou até o fim.

Abraço. E coragem.