Garrincha é como Rimbaud: gênio em estado nascente (Paulo Mendes Campos)
Podia ter sido em Dogpatch, o Brejo Seco das histórias de Ferdinando Buscapé. Lugarejo pobre onde Al Capp sintetizou uma América nada glamourosa. Acabou acontecendo aos pés da Serra dos Órgãos, nos arredores de uma modesta fábrica de tecidos e próximo de um campinho de peladas. Em Pau Grande, pouco mais de três mil habitantes esquecidos pelas gentes, nascia, há 90 anos, um certo Manoel Francisco dos Santos. O Mané Garrincha.
Minha primeira lembrança dele é auditiva. Pregado num velho rádio a válvula, ouvi a final do campeonato carioca de futebol de 1962. Jogavam Flamengo e Botafogo, num Maracanã com 160 mil torcedores. Ao Flamengo, que estava há sete anos sem títulos, bastava o empate. Além disso, tinha Henrique e Dida, um senhora dupla de frente. Dava para ser otimista. Havia um porém. Do outro lado, jogava um sujeito de pernas tortas que gostava de caçar passarinhos e não se importava com táticas, hierarquias e geometrias. Naquela tarde, Garrincha demoliu a defesa rubro-negra e destruiu a esperança do Menino. O três a zero, inquestionável, implacável, não se esquece.
Um ortopedista mostrou, certa vez, as radiografias das pernas do Mané. Juntas, os ossos formavam um X que pareciam condená-lo a uma frase do Sérgio Porto: vai despontar para o anonimato. Deve ter sido isso que pensou o técnico do Botafogo numa tarde antiga dos anos 50, quando viu aquele molecote entrando no gramado de General Severiano para um teste. Ainda por cima, seria marcado no treino pelo Nilton Santos, a Enciclopédia do Futebol, terror em preto e branco dos pontas-direitas. Quando o novato pegou a bola e correu para cima do Nilton, audácia do bofe!, a turma da arquibancada ensaiou uma gargalhada. Vai humilhar o garoto, não tem jeito. Então, o espanto. Mané dá um come por debaixo das pernas do Enciclopédia. Ninguém tinha se atrevido a tanto! Nilton recomenda imediatamente a contratação daquela figura rara. Era aconselhável que não o pegasse pela frente com outra camisa.
De certa forma, Garrincha, que é o nome de um passarinho que não se adapta ao cativeiro, jamais saiu do campinho de terra batida de Pau Grande, onde jogava peladas pelo time da fábrica. Pés descalços, sem camisa, tomando cuidado para não isolar a bola no barranco lateral. “Eu nunca fui muito de futebol, não!”, chegou a dizer.
Há muitas histórias que revelam sua alma desacorrentada. Minha preferida é um comentário que fez sobre a final da Copa de 1950, um trauma que marcou gerações. Paulo Mendes Campos registrou este comentário numa crônica: “No último jogo daquela Copa que teve aqui no Rio, eu não dei bola. Não ouvi nem rádio. Fui caçar passarinho. Rapaz, quando cheguei de tardinha lá em Pau Grande, levei um susto danado: tava todo mundo chorando. Pensei logo que fosse desastre de trem. Quando me contaram que o Brasil tinha perdido é que eu fiquei calmo e falei pro pessoal que era bobagem chorar por causa de futebol”. Comentário igual fez Obdulio Varela, capitão da Celeste no Maracanazo, quando terminou o jogo. Olhou para a arquibancada, constatou o clima fúnebre, do mais absoluto desalento, e, surpreso, disse: “Não compreendo. Isso é só um jogo!”.
Todos os seus marcadores, carniceiros ou leais, pensaram ter a chave para marcá-lo. Era previsível. A arrancada seria sempre pela direita, bastava cercá-lo por ali. Até hoje mantêm a convicção… e a memória do baile que tomavam. Castigo pelo grave erro de avaliação. O monotemático de Pau Grande foi, na curta carreira, imarcável. E, na feliz sacada de Luiz Carlos Barreto e Joaquim Pedro de Andrade, a alegria do povo.
Terminou abatido precocemente pelo alccolismo. Neste nonagésimo aniversário de nascimento do Garrincha, tenho a impressão de que é impossível imaginar outro igual na atualidade. Não digo isso apenas pela técnica. Os jogadores de hoje têm, como diria o Nelson Rodrigues, saúde de vaca premiada. O driblador, o criador de nuvens, é personagem quase desaparecido. Se surgisse, impávido colosso, seria massacrado pelos velocistas. Além disso, e talvez principalmente, desapareceu o espírito amador, do passarinho que não conhece gaiolas. Os jogadores d’agora são dublês de “empreendedores”, não importa a cor da camisa. Quem se atreveria a dizer, como o fez Garrincha, que a Copa de Mundo é um torneio mixuruca, que não tem nem returno?
Por tudo o que você foi e fez, Garrincha, o Menino dentro de mim te absolve da coça que aplicou, sem piedade, no meu Flamengo, numa tarde calorenta do verão de 1962. Cada vez que revejo suas jogadas, lembro de um trecho da marchinha de carnaval que a boazuda Angelita Martinez eternizou: “Mané Garrincha, até hoje meu peito se expande”. E se expande para as alturas da arte que você criou e nos fez felizes.
Abraço. E coragem.