Quando soube, ficou impressionado. Para ele, atiradeiras evocavam outras imagens, nos matagais da infância. Época em que, ignorantes do valor de curiós, canários e periquitos, caçávamos passarinhos sem o menor sentimento de culpa. Não era difícil comprar uma daquelas armas primitivas. Nas feiras livres, faziam companhia a espoletas e traques, sonhos pendurados em barbantes frágeis.

Pois não é que comunidades quilombolas do sertão de Pernambuco descobriram uma nova função para nosso velho lançador de pedras, terror da passarada e horror dos ambientalistas? Vivendo em áreas degradadas da caatinga, os agricultores começaram a usar as atiradeiras para lançar sementes de árvores nativas da região em locais de difícil acesso. A Natureza começa a responder com arbustos e promessas de vida.

Por que não aproveitar esta técnica para semear alguns ventos amenos e tempestades criativas, pensou? Subiu numa pedreira velha da memória, armou-se de bodoque imaginário e pôs-se a fecundar o que a vista alcançava.

A primeira semente tinha marca uruguaia. Eduardo Galeano, torcedor do Nacional de Montevidéu, gostava do futebol como arte do improviso e do espanto. Não importava de onde viessem. Dizia-se um mendigo do bom futebol, que percorria os estádios suplicando uma bela jogada pelo amor de deus. A semente galeana forneceria beleza e encantamento.

A segunda, multifacetada, vinha grávida de poesias. Talvez fosse melhor dizer dos Meninos que inspiram poetas e lhes dão rosto de eternidade. Como numa noite esquecida no extinto Alcazar, em Copacabana, quando se reuniram poetas para homenagear Pablo Neruda, ilustre confrade chileno. Um deles percebeu o brilho de infância no fundo dos olhares de todos, que se materializou no prazer com que Manuel Bandeira, sorriso escrachado, devorou um sorvete de creme. A semente robusta vai virar peraltice e saudade.

Mal tinha lançado a segunda e a terceira já estava pronta no estilingue. O nome dela era Silêncio e também tinha selo de los orientales. Mario Benedetti, exímio germinador de futuros, nos lembrou que “há poucas coisas tão ensurdecedoras como o silêncio”. Crescerá um arbusto delicado, cercado de predadores que o atacarão, vilipendiarão, ironizarão, humilharão. Para resistir, dará à luz um vegetal gêmeo. Terá razão única e nome plural. Será o irmão Palavras, que não precisará da suspeita palavra de honra, nem será levado pelo vento. Cada um florescerá a seu tempo.

Em seguida, foi a vez da semente ideias. Todas elas. A de jerico, a luminosa, a tempestuosa, as eurecas, a tortuosa, a ardilosa. Como disse Millôr Fernandes, “ter uma ideia/é por a mão/numa colmeia”. Pensar, ter ideias, já dizia o Galileu de Brecht, é um dos maiores prazeres do ser humano. Mas quantos de nós estão dispostos a aceitar a humanidade dos outros?

Faltavam apenas duas sementes. A penúltima é de cor alaranjada, mede pouco mais de 5 centímetros e vive no interior de bromélias. Tem nome. É Xenohyla truncata, uma perereca sui generis, que só existe em pequenas áreas da Mata Atlântica. Ao invés de insetos, seu cardápio é formado por frutas e flores. Além disso, espanto!, suga néctar e, ao fazê-lo, o pólen gruda em suas costas úmidas. Quando pula de flor em flor, espalha o pólen e garante a reprodução das flores. Um símbolo de colaboração, mensagem de belezas que, por não conhecermos, estamos destruindo metodicamente. Voa, pererequinha, espalha teu pólen fertilizador pela terra devastada e triste que estamos legando aos que ainda virão.

O que fazer com a última semente? Decide mantê-la no bornal, sem conhecer-lhe a certidão de nascimento. Viajará por mundos turbulentos, por caatingas remotas, por conflitos estúpidos, por sonhos frustrados, por melancolias de toda sorte. Arriscará semear uma esperança?

Abraço. E coragem.