Estava numa reunião de trabalho na Petrobras. Construíamos cenários para o país e o mundo na década seguinte. Não lembro a razão, mas o assunto derivou para judeus e judaísmo. Malandro que sou, calejado neste tipo de conversa, perguntei aos colegas quantos judeus eles achavam que havia no Brasil. As respostas variaram muito, mas sempre de milhão para cima. Sequência de queixos caídos quando informei que não passavam de uns 100 mil. Ou cerca de 0,05% da população total da época.
Era uma amostra representativa do imaginário popular sobre a presença judaica no Brasil. Por absoluta falta de informação ou, infelizmente, por antissemitismo entranhado (“os judeus dominam setores-chave da sociedade!”, cacarejam antissemitas, expandindo o delírio para uma pérfida conspiração mundial contra a humanidade), acredita-se que a comunidade judaica seja muito maior do que o é na realidade. Para quem não sabe, existem no mundo inteiro cerca de 16 milhões de judeus. Menos do que a soma das populações das cidades de São Paulo e Rio de Janeiro.
Por trás dos algarismos, persiste uma velha questão. Afinal de contas, quem é judeu? Não há um manual do usuário, com certezas categóricas. A História consagrou muitas respostas. Os “de fora” caracterizam-no como religião, raça, portador de certas características físicas. A própria História tratou de desbaratar generalizações. Enorme parcela dos judeus não é praticante da religião. Há ateus declarados e agnósticos. Judeus que frequentam terreiros e templos budistas. Raça é uma categoria desacreditada pela ciência. Características físicas? Quais são as semelhanças corporais entre judeus etíopes e dinamarqueses? Entre judeus marroquinos e franceses? Dizer que alguém tem “cara de judeu” faz parte do léxico antissemita, que usa caricaturas com o objetivo de tornar a “aparência” judaica desprezível, asquerosa.
Para os “de dentro”, a confusão não é menor. Cresci sem que existisse dúvida a respeito. A matrilinearidade estava garantida. Ser filho de mãe judia, além das piadas, traumas e perspectiva de muitos anos de análise, certificava a identidade. Com o tempo, surgiram dúvidas e incômodos. Não me sentia à vontade com uma vida ritualizada. A religião deixou cedo de explicar os mistérios da vida e as encrencas da sociedade. Segui firme as pegadas de Primo Levi: “Se existe Auschwitz, não existe deus”. O nacionalismo judaico jamais me atraiu. Nunca pertenci a movimentos sionistas. Sobravam, então, poucas opções no cardápio identitário.
A verdade é que nenhum de nós é um bloco homogêneo. Somos uma superposição de camadas. Minhas placas tectônicas, por exemplo, são rubro-negras, ateias, tijucanas, internacionalistas, tímidas, revolucionárias (embora com pitadas conservadoras), militantes, Marx (Groucho e Karl), ansiosas por silêncio. Feijoada completa. Qual o papel do judaísmo nesta valsa existencial?
Sobretudo memória. Trago rastros da Bessarábia e da Polônia ancestrais, que não conheci, mas invento. Dali vieram os sabores não apenas das nostalgias incuráveis, mas dos ingredientes que formaram gostos e aromas. De lá aprendi o valor do sorriso pouco na paisagem de tristeza muita. Descobri a diversidade. Vivenciei o ocaso da língua ídish, cuja melodia atravessou gerações e legou uma cultura potente, infelizmente cada vez menos acessível pelo desaprendizado do idioma.
Sou um judeu sazonal, espasmódico. Tenho momentos de afastamento das raízes familiares. Outros, de intensa proximidade com o que não sei definir, mas são fragmentos de memória. Sou capaz de me emocionar sem culpa por passagens litúrgicas (como o Kol Nidrei), mantendo a convicção ateia. Sei de ateus que choram ao ouvir a Missa de Réquiem, de Mozart, ou a ária Erbarme dich mein Gott, de Bach. E daí? Beleza não exige atestado de crença. Na linha de Isaac Deutscher, solidarizo-me com os judeus vítimas de preconceitos, da mesma forma com que me alinho à luta de todos os grupos humilhados e ofendidos. A História, aliás, registra incontáveis judeus que combateram por Justiça e Liberdade. Para todos.
Alguns dizem que o judeu é o povo que gosta de zombar de si mesmo. As piadas judaicas refletem esta peculiaridade. Nos filmes do Woody Allen há quase sempre um judeu inseguro, colecionador de neuroses, muitas vezes torto na vida. No entanto, não há climas depressivos. A gente acaba rindo das situações embaraçosas e dos apuros que nunca se resolvem. Woody escreveu: “Cresci dentro da tradição judaica e me ensinaram que nunca deveria me casar com uma mulher que não fosse judia, que eu nunca deveria me barbear numa noite de Shabat e, principalmente, que eu nunca deveria fazer a barba de uma mulher não-judia sábado à noite”.
Oi vei!
Abraço. E coragem.