What’s puzzling you/Is the nature of my game (Mick Jagger)

O papo de hoje é sobre o discurso do Lula nas Nações Unidas, terça-feira passada. Antes de mais nada, que diferença das aberrações que o Impronunciável ejaculou para o mundo durante quatro anos! Luiz Inácio acertou ao abordar temas importantes como as crises climática e da fome, a concentração obscena de riqueza no mundo, os crimes cibernéticos, o direito dos povos à autodeterminação, o militarismo. Alguns observadores chamaram o pronunciamento de “histórico” (tenho alergia à banalização deste termo). Não subestimo a relevância dos temas. No entanto, como não sou chegado a uma idolatria, nem tenho compromisso com a superfície ou infalibilidades papais, faço algumas observações para dialogar com quem tiver interesse.

Começo pela própria ONU. Um mínimo de informação confere a mais total irrelevância ao organismo, tanto na formulação de políticas nacionais como na solução de conflitos armados. Um exemplo óbvio são as reiteradas condenações ao embargo imperial norte-americano a Cuba. Ano após ano, discurso após discurso, veemências após veemências, quase 200 nações aprovam resoluções que condenam os Estados Unidos. Nada acontece, o embargo permanece intocado, a confirmar que saliva e aplauso não incomodam as reais fontes de poder.

Lula mencionou, corretamente, que a fome atinge 735 milhões de pessoas no mundo, ao mesmo tempo em que os gastos militares somam, anualmente, mais de dois trilhões de dólares. Entretanto, estaciona aí. Não denuncia (como Che Guevara o fez nos anos 60) as causas disso. É como se achasse, ingenuamente, que tudo não passa de uma questão de moralidade. Bastaria convencer os donos do capital a terem compaixão, renunciarem à acumulação de recursos e curarem os pesadelos, com imagens de famintos, doando, sistematicamente, sua riqueza. Em suma: uma licantropia reversa. Lobo virando gente. Quem acredita nisso?

O presidente acusa o neoliberalismo pelo agravamento das desigualdades. Bingo. Gostaria de vê-lo coerente, aplicando este insight na política interna, dominada por quadrilheiros neoliberais. O que se vê são concessões sucessivas aos setores políticos mais atrasados, com consequências que se desdobrarão ao longo do tempo.

Aprendi que o voluntarismo não é bom conselheiro. Neste aspecto, o grand finale do discurso de Lula foi atribuir a uma suposta resignação global a falta de medidas concretas para enfrentar as desigualdades. “Falta vontade política daqueles que governam o mundo”, disse o presidente. Ora, ouvindo essas palavras parece que conversas ao pé do ouvido com os senhores do universo teriam o condão de despertá-los para a fraternidade e um senso aguçado de justiça. Como se eles não conhecessem os números catastróficos mencionados pelo brasileiro. Mais uma vez, subentende-se que estaríamos tratando de aspectos morais e não de guerras de interesses, que se confundem com os interesses das classes dominantes de cada país.

Para vencer a resignação, e disso Lula passa ao largo, é preciso, antes de mais nada, conhecer as causas estruturais da exploração que leva ao desemprego, a todo tipo de desigualdade, à pobreza, à fome. Conhecer as dinâmicas de acumulação de capital, que não se enfrentam a golpes de saliva ou simples boa vontade dos manda-chuvas. O conhecimento é apenas o primeiro passo. Organizar o povo em torno de agendas libertárias, de emancipação de todas as formas de exploração, é indispensável. Enfrentar a apatia é um processo, que não será bem-sucedido se depender da iniciativa de quem se beneficia dela. O escorpião continuará a picar o sapo no meio do lago, mesmo que isso implique na sua morte. Essa é a sua natureza.

Termino como comecei. O discurso de Lula, comparado ao lixo golfado pelo Abominável Homem das Fezes durante quatro anos, é o retorno da diplomacia liberal inteligente. Vai ter consequências? Daqui a cinco anos, por exemplo, alguém vai se sair com Lula dixit para justificar uma política social? Pela absoluta falta de mergulho nas causas dos problemas que levantou, o discurso tem baixíssima capacidade de mobilização. Sejamos francos. Todas as informações passadas estão ao alcance de um toque no Google. Sem abrir um debate sobre os fundamentos dos desequilíbrios monumentais que castigam a Humanidade, o discurso, aliás qualquer discurso, serão apenas palavras. E palavras, como bem sabemos, leva-as o vento. Ou são lembranças de Parole, parole, parole, cantadas pela italiana Mina nos idos de 70.

Abraço. E coragem.