Algum dia tinha que acontecer. E foi hoje, neste início de 5784. Envolvidos por uma dessas brumas cinematográficas que anunciavam vampiros e espíritos aflitos, eles iam chegando aos poucos.

No princípio, intrigados. Não costumavam ficar juntos, mas aquele lugar os acolhia bem, logo ficaram à vontade. Com abraços mais ou menos apertados dei-lhes as boas-vindas. Shul’m aleich’m, reb Zissi! Vus machstu, reb Avrum? Kum aher, reb Shmil! E o cortejo só aumentava. Primeiro, os homens, na hierarquia secular a que se habituaram. Depois, menos intrigadas (elas sempre captam melhor as vibrações), as mulheres, já de avental e sabedoria a postos. Algumas, dissidentes, usavam o avental como adorno exótico, sem qualquer valor utilitário. Eram vanguardistas avant la lettre.

Os espectros que chegavam, tão familiares, nunca haviam a rigor saído daquela sala, da mesa posta, dos aromas ancestrais impregnados na alma. Acomodaram-se e o que veio a seguir me fez lembrar Lilian Helman: “Eu gosto das pessoas que se negam a falar até que tenham algo a dizer”. Naquele encontro, cada palavra tinha um pedaço carnudo de eternidade.

Enquanto esvaziavam cálices sucessivos de bronfn, a pinga ashquenazita, faziam perguntas. À moda judaica, ou seja, dessas cujas respostas jamais são pontos finais. Onde anda a boa música? Um deles havia lido num site – sim, eram espectros atualizados! – que “o mundo tem música demais que significa cada vez menos”. Oi vei, por onde andarão os Heifetz, os Rosenblatt, os Zukerman, os Horowitz, os Barenboim? Onde se podem ouvir os klezmorim? Tentei mostrar novidades criativas. Abram a cabeça, taiere neshumes! Qual o quê. Eram celularmente nostálgicos.

Neste momento, entraram em cena as mulheres. Aquelas dissidentes. Peraí, argumentaram, o mundo não parou nas aldeias, na dor do exílio, nas perdas tão sentidas. Olhem em volta. Já ouviram falar em choro, em Hamilton de Holanda, Henrique Cazes, Maurício Carrilho, Zé Paulo Becker, Paulinho da Viola? Já escutaram Yamandu Costa? E foi proclamada a confusão. Eu me divirto à distância. Ora, a vida me ensinou que o ideal seria um Paulinho Heifetz, um Daniel Carrilho, um Henrique Rosenblatt. A salada rítmica, a sopa cultural, a combinação de experiências, costumam dar liga. Choro e klezmer não são criações quimicamente puras. Poros abertos, resultam de assimilações ricas de significados. Diálogos no mundo das partituras.

O forrobodó espectral corria solto, quando chegaram à mesa, em marcha triunfal, os primeiros guefilte fish, bolinhos de peixe. Salgados, levemente adocicados, tinha para todos os paladares (que permaneciam exigentes mesmo na etapa espectral da existência).  Como sempre, as divergências derretem e abrem alas ao gosto comum, à comunhão pelo sabor. Cada garfada condensa histórias e memórias.

O banquete continua com o yuach mit kneidlech, o caldo fumegante e dourado de galinha com bolinhos de farinha de matsá. O silêncio na mesa demonstra reverência àquela maravilha. Simples, terrivelmente trabalhosa, identificadora.

Quem ainda tem fôlego, enfrenta a etapa do ferfale com carne. Arremata-se com maçãs generosamente banhadas em mel. Há um afeto, uma plenitude, fluindo no ar, que nos gruda, material e subjetivamente, nas cadeiras. São encontros sempre improvisados, cada pedaço de lembrança, cada riso ou lágrima, definindo nossa silhueta e nossos caminhos. O tio Bóris, discreto mobilizador, sereno, dá interpretação laica a uma velha tradição religiosa judaica e nos junta num abraço coletivo: Shehehianu vequimanu vehiguianu lazman hazé! Que a nossa relação continue viva pois foi ela que nos trouxe até aqui! E todos, ateus ou não, respondemos: Umain! (amém com sotaque polonês-bessarabiano).

Cada qual no seu canto, voltamos à realidade inconstante. Com uma única certeza: não existe cada qual no seu canto. É cada qual em todos os nossos cantos.

Que 5784 continue permitindo os encontros que nos batizam e constroem.

Abraço. E coragem.