Às mulheres de Calama, que jamais desistiram.

Às vésperas do 50º aniversário do golpe que derrubou o governo da Unidade Popular no Chile, foi anunciado um plano nacional para localizar as cerca de 1.100 pessoas que desapareceram durante a ditadura e ainda não foram localizadas. Calcula-se que mais de 40 mil pessoas foram presas, torturadas e/ou mortas pelos militares durante os 17 anos que durou o regime.

A barbárie começou logo após a deposição do presidente socialista Salvador Allende. A jornalista Patricia Verdugo descreveu o que foi a Caravana da Morte, monstruosidade que espanta mesmo num continente que se habituou ao horror. Um general, acompanhado por oficiais, percorreu o Chile, caçando “inimigos do regime”. No final da operação, 75 pessoas haviam sido trucidadas com inacreditável sadismo. Não bastava assassinar. Era necessário batizar a nova etapa com sangue e medo. Era vital para os algozes afogar em sangue a memória da experiência da Unidade Popular.

Interessante notar como os milicos golpistas latino-americanos sempre foram apaixonados pela morte e movidos por covardia. No Chile, a Caravana. Na Argentina, os Voos. Prisioneiros políticos sedados, embarcados em aviões, foram arremessados ao rio da Prata. São ecos das falanges fascistas espanholas. Em 1936, durante um evento na Universidade de Salamanca, cujo reitor era o poeta e filósofo Miguel de Unamuno, o general franquista Millán Astray gritou: “Abaixo a inteligência! Viva a morte!”.

O documentarista chileno Patricio Guzmán dirigiu o belo Nostalgia da luz. Nele, aparecem mulheres que percorriam o deserto do Atacama, lugar mais árido do planeta, buscando com ferramentas rudimentares ossos de parentes sequestrados e assassinados por verdugos pinochetistas. Mais do que comovente, é um registro em dupla direção. Na primeira, demonstra a estarrecedora capacidade humana de infligir sofrimento. Na outra, a contrapartida da memória, da dor que não aceita resignação, da dignidade que enfrenta a violência. Lembrar, aprendemos a duras penas, é resistir.

O Centro Cultural do Banco do Brasil está exibindo uma exposição de fotografias do Evandro Teixeira, grande craque do fotojornalismo. Entre muitas imagens, as que ele captou no Chile em 1973, logo após o 11 de setembro. Lá estão a UTE, universidade bombardeada e vandalizada (abaixo a inteligência!, lembram?), o Palácio de la Moneda arruinado por caças da Aeronáutica, o funeral do poeta Pablo Neruda, morto menos de duas semanas após o golpe. Evandro conta, emocionado, como fotografou a enorme multidão que, mesmo ameaçada por forte aparato militar, acompanhou o caixão do poeta até o cemitério. Gente que declamava versos de Neruda, cantava às lágrimas e de punho cerrado a Internacional, saudava o companheiro que foi amigo pessoal de Allende e militante comunista (senador pelo PC em 1945).

O impacto da exposição me fez retornar a velhas perguntas e inquietações. O governo da Unidade Popular foi extremamente importante para minha geração. Política, ideológica e culturalmente. O aprofundamento da experiência da Nueva Canción Chilena, unindo tradição folclórica e lutas populares. Ouvíamos Victor Jara, Violeta, Isabel e Angel Parra, Inti Illimani, Quilapayun, Rolando Alarcón. Os artistas iam aonde o povo estava. Os trabalhadores se organizavam, participavam, ganhavam voz na hierarquia política. A juventude despertava para a política com entusiasmo e criatividade. As ruas, os estádios, os muros, as livrarias, todos ferviam.

A pergunta que insiste em permanecer atual é: será possível transitar ao socialismo dentro da institucionalidade burguesa? Foi o que Unidade Popular tentou. Como se pedisse licença para ultrapassar o modo capitalista de produção. Licencinha aí, seu dotô. Contra isso agiu uma combinação de forças internas e externas. Hoje já se conhece a extensão da interferência do imperialismo no processo chileno. A Internacional Capitalista, com a ajuda da classe dominante chilena, abortou tudo com táticas sórdidas. Na luta de classes, a burguesia venceu um round.

Terá sido em vão? Certamente não. A História se constrói com luta, mas também com memória. Há muito o que aprender com a experiência chilena. Transfiro a palavra ao Neruda, para sintetizar a esperança de retomada de um projeto de construção do socialismo, ideia tão generosamente abraçada pelo povo chileno nos idos de 70. É o trecho final do discurso que o poeta proferiu em 1971, ao receber o Prêmio Nobel de Literatura. Deixo no original para conservar sua força.

“Yo creo en esa profecía de Rimbaud, el vidente. Yo vengo de una oscura provincia, de un país separado de todos los otros por la tajante geografía. Fui el más abandonado de los poetas y mi poesía fue regional, dolorosa y lluviosa. Pero tuve siempre confianza en el hombre. No perdí jamás la esperanza. Por eso tal vez he llegado hasta aquí con mi poesía, y también con mi bandera. En conclusión, debo decir a los hombres de buena voluntad, a los trabajadores, a los poetas, que el entero porvenir fue expresado en esa frase de Rimbaud: solo con una ardiente paciencia conquistaremos la espléndida ciudad que dará luz, justicia y dignidad a todos los hombres”.

Compañero Allende: presente!

Camarada Neruda: presente!

Compañeros de la Unidad Popular: presente!

Abraço. E coragem.