Correnteza de rio/que não vai se acalmar (Edu Lobo)

Dia desses, um articulista da Folha de S. Paulo perguntou se Lula é de esquerda. Nas atuais circunstâncias, essa talvez seja uma questão meramente retórica. Luiz Inácio foi a única alternativa viável para derrotar, nas urnas embora não nas relações de poder, a extrema-direita. Sob esse prisma, não há qualquer dúvida de que o ex-metalúrgico é um homem à esquerda no espectro político nacional. O que me interessa, contudo, é dialogar com outros aspectos.

Para começo de conversa, é evidente que Lula não é, jamais foi e não pretende ser comunista. Chegou mesmo a declarar que, ser de esquerda, é uma espécie de doença quando se manifesta na maturidade. Isso aí é o fantasma oportunista e ignorante que, despolitizados e seduzidos pela estupidez bolsonarista, setores da população assimilaram.

Pesquisa recente feita pelo Datafolha desenha o nível de desinformação, neurose e descolamento da realidade de uma grande massa de brasileiros. Fico em duas conclusões da pesquisa. Mais de um terço dos entrevistados (36%) defendem, total ou parcialmente, que a ditadura civil-militar (1964/85) beneficiou o país. Mais da metade (52%) concordam, total ou parcialmente, que o Brasil “corre o risco” (!) de se tornar comunista. É neste imaginário popular, deformado e semiesquizofrênico, que atuam as forças políticas. Um cenário quase catastrófico.

Lula tem origem na militância sindical, que se limita a negociar a redução nas taxas de exploração do trabalho. Não está em sua agenda questionar a permanência desta exploração e a possibilidade de ultrapassá-la. Luiz Inácio usa, com habilidade, esta formação política, negociando sem alterar a hegemonia do capital. Não vai, nem irá, além disso. Quer reformar o que for possível, sem confrontar regras inegociáveis do modo de produção capitalista. Antes de esquerdista, ele é um reformador.

O articulista da Folha usa a régua diversionista para definir a esquerda. Navega nas pautas de costumes, ambientais, identitárias. Como se a esquerda devesse limitar-se a discutir a extinção de baleias, a liberalização do uso de drogas, os direitos dos povos originários, os preconceitos. Passa longe de categorias como a luta de classes, que não é apenas o embate direto entre exploradores e explorados, mas o reconhecimento de que existem conflitos que não se resolvem idealizando a boa vontade e o “bom senso” dos antagonistas. Evidente que o combate ao racismo e a preservação ambiental, por exemplo, são importantes, mas representam antes consequências de um tipo de sociedade predatória, fundada em desigualdades, injustiça e desprezo pelo bem-estar coletivo.

Lula, ora pois, não é um revolucionário, durmam tranquilas as hienas protofascistas. Por isso, dele não espero que siga uma das tradições mais consistentes da esquerda histórica: ajudar o povo a compreender os mecanismos que geram e reproduzem pobreza, discriminação, desesperança. Mecanismos que não são meras armadilhas do destino, mas construções determinadas pelas relações entre os homens. Uma pedagogia que estimule organização e participação. Passo inicial para a emancipação dos trabalhadores das múltiplas formas de dominação do capital.

Dou um exemplo prosaico. O governo acaba de divulgar a proposta de Orçamento para 2024. Quem consegue compreender a salada numérica? Quantos se interessam por isso? Os cálculos são apresentados como se não fossem afetados pela política, sem pressões, higienizados pela burocracia estatal. No entanto, entender a distribuição de recursos, as razões das prioridades, seria uma bela lição de como funciona a dinâmica do poder. Um político, já não digo de esquerda, mas ao menos progressista, usaria os números para esclarecer, educar, mobilizar. Um “você sabia?” politizado, difundido à larga em redes sociais. Nada disso passa pela cabeça do companheiro ex-metalúrgico. O jogo dele é agradar o “mercado”, não fazer marola, ceder continuamente espaço político para os de sempre.

Voltando à pergunta inicial. Lula tem uma respeitável trajetória política, foi importante na luta contra a ditadura. A preocupação com os segmentos mais vulneráveis do país é louvável. Entretanto, sua visão assistencialista dos problemas sociais não combina com a necessária transformação do povo em protagonista de sua história. Pelo contrário. O fôlego reformista depende de lideranças carismáticas, do “fique tranquilo, deixa comigo que eu resolvo”, da prevalência dos bastidores e das mediações burocráticas sobre a participação popular. Se o projeto for apenas administrar a dinâmica de acumulação do capital, amenizar seu apetite canibal por lucros, Lula é um bom quadro. De esquerda? Há controvérsias. Se a intenção for superar este modo de produção material e subjetivo, a chave será outra e Lula será ultrapassado. Pela esquerda.

Abraço. E coragem.