Que é isso, menino? Maneira mais feia de se comportar na mesa. Mais respeito com as visitas, o que vão pensar de nós? A cara de poucos amigos dos Grandes era convincente: o arroto pegara mal. Não reconheciam a urgência do som. Era questão elementar de Física. Ar se concentra, pressão aumenta, et voilà. O que tinha de mais? Eructe-se, ora bolas, a bem do alívio na pança e do choque nas boas maneiras dos adultos.
Fico sabendo que as vacas, aquelas cuja saúde foi exaltada pelo Nelson Rodrigues, são uma das principais vilãs do efeito estufa. Os arrotos destes ruminantes, que têm quatro estômagos, são potentes geradores de metano, gás nada inocente, que compete com o gás carbônico como principal veneno para a atmosfera do planeta. A imagem serena das vacas suíças em bucólicas paisagens ofusca o potencial tóxico das emissões estomacais.
Cientistas canadenses encararam o problema e puseram o ovo em pé. Não, não prescreveram o veganismo em massa, nem extermínio dos rebanhos. Desenvolveram um produto que, ingerido, dá ao sêmen do touro um traço genético de baixo teor de metano. As vacas e novilhas melhoraram o comportamento à mesa e, sem abrir mão de capins gourmetizados e rações nutritivas, deixaram de arrotar tanto.
Minha geração tem uma relação afetuosa com estes mamíferos e seus familiares. Isso aparece nas muitas referências, divertidas e nostálgicas, a eles e aos alimentos que nos proporcionam. Quando o Rio ainda era uma cidade horizontal, certa figura invisível frequentava as portas das casas. O leiteiro, cujo rosto ninguém conhecia, chegava quando o dia era ainda uma fresta e deixava garrafas com leite. Os cascos vazios eram devolvidos para, no dia seguinte, voltarem com o líquido branco que alimentou gerações. O leiteiro, personagem tão importante na paisagem urbana quanto o garrafeiro, o amolador de facas, o homem do realejo, o funileiro e o vendedor de chica-bon, inspirou Drummond num poema-crônica de rascante beleza.
No dicionário ludopédico, quem, veterano como eu de gramados e charangas, não lembra da leiteria do Castilho? Carlos José Castilho foi goleiro do Fluminense entre os anos 40 e 60. Tinha fama de sortudo. Se a bola passava por ele, batia na trave ou fazia estranhas curvas, mas não entrava no gol. Por razões que se perderam no tempo, associava-se leiteria com sorte. Fora do campo, ela não ajudou o guarda-valas. Abatido por uma depressão, suicidou-se aos 59 anos.
Castilho não conheceu a categoria dente-de-leite nas chamadas divisões de base dos clubes. Hoje, há uma coleção de sub isso, sub aquilo. Em outros tempos, o grande problema era a subnutrição que devorava muitos garotos que chegavam para treinar.
Na República Velha, era a política do café com leite que garantia às oligarquias paulista e mineira a hegemonia no jogo viciado do poder. Com isso, avacalhava-se qualquer ameaça de democracia no país. Quem não concordava, apanhava que nem boi ladrão. Os políticos comportavam-se como vacas de presépio, mamavam nas tetas dos coronéis.
Ainda na política, Aparício Torelly, o Barão de Itararé, foi eleito vereador no Rio de Janeiro (ainda era Distrito Federal), em 1946, pelo PCB. Um de seus lemas de campanha era: “Mais água e mais leite. Mas menos água no leite”. Para quem não liga a com b, produtores inescrupulosos misturavam água no leite distribuído no país. Era o leite batizado.
No tempo de vacas magras, o Menino não podia comprar os discos que queria. Os adultos não tinham mão de vaca, era somente bolso vazio. Assim, a boiada passou e o Lp do Pink Floyd, Atom Heart Mother, com a enigmática vaca malhada na capa, ficou no desejo.
Os lacradores que me perdoem, mas vou citar uma das minhas heroínas. Não, não é a Vaquinha Mococa. É a boneca Emília, criada pelo escritor que me abriu o mundo das letras e as veredas da imaginação, Monteiro Lobato. A levadíssima bonequinha de pano disse que, se a Natureza fosse mais prática, vacas teriam 2 tetas. Uma, para uso dos leiteiros. Outra, para os bezerros.
Por fim, sem desprezar os leites de rosas e de onça, sem viajar para Cuernavaca ou Vacaria, convoco o jornalista, radialista e humorista José Martins de Araújo Júnior, mais conhecido como Don Rossé Cavaca, morto em 1965 aos 41 anos de idade. Mestre de ótimas tiradas, sentenciou: “Meu bem, agora desliga a televisão que eu quero te apresentar os amigos que jantaram conosco”. Hoje, a televisão foi ultrapassada por celulares e computadores. É preciso tirar leite de pedra para ganhar a atenção do interlocutor que, pescoço torto, não desgruda da luz azul que abduziu meio mundo. Os eletrônicos são a mais recente vaca sagrada e a gentileza do diálogo é a vaca que foi pro brejo. Na arquibancada, vendo o circo pegar fogo, a vaca que ri.
Abraço. E coragem.