Na volta triunfal ao cinema de rua, um susto. Procurei, em vão, a bilheteria. O antigo box onde comprávamos ingressos estava lacrado. Procura daqui, assunta dali, descobri que a vendedora de drops do bar interno passou a acumular a função dos bilheteiros. Pronto, mais uma profissão extinta. Segue o caminho dos trocadores de ônibus, lanterninhas de cinema, sorveteiros em carrinhos da Kibon, vendedores de pirulitos cônicos, tocadores de realejo, radioatores.
Entre os exterminadores de empregos, a mais nova estrela é a chamada Inteligência Artificial (IA). Estamos na primeira infância de uma revolução tecnológica que se espalha por inúmeros processos de produção material e simbólica. O cérebro eletrônico deixou de ser uma denominação genérica dos computadores e avança para dissolver a fronteira entre o real e o imaginário. Como em toda transição, há muita insegurança sobre o que pode acontecer. O mundo, tal como o conhecemos, balança, sem que esteja claro como será aquele que o substituirá. Se, por um lado, surgem equipamentos que aperfeiçoam diagnósticos médicos e ajudam cientistas a traduzir textos milenares em instantes (é o que está acontecendo com o idioma acadiano, que existiu há mais de 2 milênios), por outro os vídeos das chamadas deep fakes corroem as noções mais elementares de realidade.
Um exemplo preocupante é o que acaba de acontecer no México. Certa candidata de oposição nas eleições presidenciais, a senadora Xóchitl Gálvez, viralizou nas redes com um vídeo em que desautorizava sua adversária governista. Descobriu-se que tudo, desde as imagens de Gálvez até seu pequeno pronunciamento, era falso. O material foi inteiramente produzido por ferramenta de IA. É previsível a massificação destes programas falsificadores, com sistemas cada vez mais sofisticados.
O desemprego provocado pelo incremento acelerado da automatização de processos produtivos pode chegar a 20% dos empregos globais. É o paraíso dos burgueses, proprietários dos meios de produção. As máquinas automatizadas são trabalhadores dóceis, sem necessidade de descanso ou sindicatos, manutenção barata. É o inferno para as multidões de desempregados crônicos, que se somarão aos milhões de centrifugados pela lógica implacável do capital. Já pensei muito sobre o destino dessa gente. Abandonados e sem o mínimo para sobreviver, simplesmente morrerão de fome, em silêncio? Perambularão pelas cidades em contingentes cada vez maiores, assustando os “incluídos”, que, claro, chamarão os meganhas para resolver o inconveniente? Surgirá uma centelha de rebeldia, com consequências globais e inéditas?
Centenas de cientistas e pesquisadores subscreveram um pequeno texto de alerta sobre o descontrole na evolução da IA. “Mitigar o risco de extinção por IA deve ser prioridade global, ao lado de outros riscos de escala social, como pandemias e guerra nuclear”. Creio que se inspiraram em Hal, o computador de 2001: uma odisseia no espaço. A máquina estava programada para garantir o sucesso da missão espacial a Júpiter. Concluiu que os tripulantes eram uma ameaça para se alcançar o objetivo. Ato contínuo, tratou de eliminá-los. A Criatura aniquilou (quase) todos os Criadores. Seria apenas uma conjectura da ficção científica? Poderíamos entrar na linha de tiro dos algoritmos fora de controle? Perguntas que assombrarão a existência de nossos filhos e netos.
Aqui jaz uma dúvida fascinante. Em algum momento, poderão as máquinas “sentir”, “criar”, “improvisar”? Terão redes neuronais que admitam surpresas? Até aqui, não há nada parecido com isso. O máximo que se pode projetar é uma simulação burocrática destes movimentos humanos. Não imagino um androide criando a coreografia de Fred Astaire dançando com um cabideiro (!) em Royal wedding. Menos ainda improvisando o drible humilhante que Pelé aplicou em Mazurkiewicz em 1970 ou dirigindo a cena final de Eles não usam black-tie, com os personagens de Fernanda Montenegro e Gianfrancesco Guarnieri catando feijão em silêncio. Aliás, como seria um “silêncio introspectivo” destes mecanismos? Não há planejamento eletrônico que autografe a primeira bicicleta do Leônidas da Silva ou um improviso pianístico do Count Basie. Como seria a amizade de duas máquinas? Empatia de arruelas, chips e óleo nas juntas?
De nada, entretanto, adiantará nossa orgulhosa capacidade de improvisar, sentir, se a decisão de uma IA mal-humorada e bem equipada for varrer-nos da face da Terra. Aí, então, não poderemos ir nem para Pasárgada.
Abraço. E coragem.