No outro dia, chegamos bem cedo aos arredores da Provincia di Napoli, bem perto do nosso antigo Quartiere Ebraico e da antiga Sinagoga Scuola (Ah, a Sinagoga Scuola!). Fomos entrando e meu filho vendo aquelas construções antigas, outras modernas, com flores nas  janelas iluminadas pelo sol da manhã. Já havia alguma movimentação pelas ruas e ele ficou com os olhos arregalados por chegarmos ali. Deixamos, então, o carro em determinado lugar, e saímos caminhando pela Via Appio Claudio e Piazza della Republica. Meu filho olhava tudo em redor, aqueles terraços com roupas penduradas no alto, parecendo cantinas a céu aberto, quando atravessamos a Via Giambattista Vico, meu filho parou, emocionado, e disse-me:

Babbino, estou sentindo aquele mesmo perfume do meu nonno neste lugar – que saudade!

Abracei-o sem dizer nada, e fomos a um bar, próximo ao Castello Baronale,pois aquele momento exigia mais um caffè na Piccola Caffetteria, e nas mesinhas da calçada, deixando o frágil sol sobre nossos rostos, porque estava muito frio, pedimos nosso macchiato.

Meu filho é de expressão aberta,  e se está aborrecido vê-se em sua face, e quando alegre, seus olhos verdes brilham, sua pele fica iluminada e o sorriso fica estampado! Ele estava com os olhos vívidos, a face iluminada e o sorriso marcadamente estampado, e seu café à mão, olhando-me profundamente e vocalizando ‘O Paese d’ ‘o Sole. Pus meu café sobre a mesa e minha mão sobre seu ombro:

Ecco figlio, das sementes que plantamos, recebi flores, árvores e frutos! Porém, a maior alegria é tê-las plantado, porque a vida fica por conta da simplicidade e vale mais, bem mais, que a existência.  A vida é Poesia e música, caminho, encontro, planícies, ar. A existência é poema e barulho, estrada, distância, labirinto, gases sufocantes. E a violência feita contra um ser, qualquer ser, é feita contra todos e contra o Eterno!

O amor é mesmo semear atos de bondade!  A sabedoria é nunca chamá-las de semente! E o coração é o universo onde a vida é privilegiada com Shalom. Ali não há gritos, mortes, violação – somente música, e serenidade, e lealdade, e afeto, e delicadeza! Se eu falhar, filho, não importa. Faça do seu coração o lugar com terra boa, e deixe flores nele, de todas as que se encontrarem, com variados perfumes e cores. Mas, não morra entre elas! Faça caminhos delineados, com pedras que durem e espalhe muitas placas, placas grandes, imensas, expressivas, em todos os cantos: 

AQUINÃOSEMATA!

Caminhos largos para pessoas, porque, afinal, um jardim não é sem pessoas. E não se aborreça se elas criarem passagens entre flores, de terra socada apenas, para irem e virem, e estarem, porque essa é a vida de ser humano, abrir passagens – mas, não destruir o jardim. Não queira mais que isso! As borboletas e anjos ficam por conta do Eterno.

Transforme a vida numa casa, mas não use material descartável. Ela deve durar e trazer saudades, deve deixar lembranças, lançar raízes profundas e dar frutos. Abra janelas em todas as direções e erga um teto alto, que acompanhe o telhado, a fim de ter bastante ar e música espalhada como unção e bênção humanas.

Na casa, filho, tenha poucas coisas – mais pessoas. Nenhum negócio e muitos encontros. Entre coisas, prefira as simples, rústicas e duradouras. Entre pessoas, as plenamente humanas. E, entre elas, as mulheres, especialmente as que cheiram Poesia e possam ser chamadas “bênção de D’us”, pois os seus sentidos são desenvolvidos mais que em pessoas, o seu cheiro é mais agradável e quando abrem a boca, levam os Poetas para todos os mundos.

E não se esqueça do café – ele é vital. Feito, nunca por empregadas, em coadores de pano, e servido, nunca para apressados, em xícaras pequenas de ferro esmaltado. Tudo deve ser demoradamente vivido e visto, cheirado, degustado, escutado, falado e compreendido – nunca amanhã!  Por isso, a sua casa deve ser o encontro de pessoas boas, coração e música, muita música! E Poesia, muita Poesia!

Deixe pra fora aquele que coisifica e faz do mundo um manicômio, da floresta um deserto, do rio uma privada química, do humano um escravo, de um Rabi um ídolo, dos lugares sagrados um mercado. Deixe para fora o que pisa em formigas, o que pesca por esporte, o que mantém cachorro na corrente e não lhe tira os carrapatos, o que atira contra aves, sobretudo, os que matam pequenos passarinhos ou os exibem em gaiolas – com estes nem cumprimentos! Deixe fora, quem amaldiçoar crianças (sobretudo, no ventre) e desprezar idosos (inclusive aos asilos) e se chamar geração espontânea.

Deixe fora o que ama hambúrguer e o necrófago – que fotografa e filma demais, incessante e desesperadamente, e o que se põe à mesa como que diante do cocho – e ama maledicências e lashon hará, e ama celular e noites de Internet, e ama carros, e dinheiro, o necrófilo que ama fita pornô, principalmente, pedófilos, ainda que virtuais.

Aliás, deixe fora o que ama qualquer coisa e despreza o humano e o Eterno, sobretudo, o íncubo opressor, preconceituoso, prepotente, corporativista, agiota, banqueiro, latifundiário, traficante, legalista, pedófilo, sádico, mercenário, imperialista, nazista, fascista, antissemita, terrorista, torturador, carrasco (e qualquer vampiro e parasita) e, ainda, o súcubo covarde, invejoso, voyeur, masoquista, fanático, racista (negro ou branco), monarquista, republicano caffellatte, getulista, militarista, antiético, traidor, que abraça e ri o riso odontológico, sem razão, e não olha nos olhos. O mentiroso, carlista, malufista, congressista (e qualquer hospedeiro e escória da humanidade).

E, deixe para fora, também, aquele, com ou sem anel – angustiado, que espia e ama falar (bem ou mal) da vida alheia, seja em casamento, reunião de pais e mestres, formatura, churrasco, encontro eleitoral, beneficente e orgiástico, aniversário, dia das mães, dia dos pais, natal, ano novo, reunião pedagógica ou velório, esteja no cabeleireiro e Câmara, sinagoga, mesquita, templo e terreiro, SPA, clínica e academia, condomínio e favela, avião, ônibus, elevador, escada, portão, porta e janela, corredor e sala de espera, mercado e escola, boteco, clube, novela, TV, jornal, revista, Internet e ordem secreta (e qualquer maledicente em qualquer viela escura e sufocante da sociedade).

E deixe, também, o que ama flores – e outras coisas indizíveis de plástico, diplomas pendurados, relação solitária, artificial, virtual e via telefone, e o que suga o tempo alheio, a vida alheia, principalmente, de seus familiares, e o que não paga pensão alimentícia, e o que transforma uma mulher bonita em bibelô e trofeuzinho ou escrava e zumbi. Porque esses falam de mulher como de uma coisa ou ser inferior – ah, filho, este é o pior! É tão imbecil e inútil que não acredita em amor de pupilas, lábios, pão e umbigo; não acredita em Poesia, música, suor, intimidade e comunhão! E não sabe nem acredita que haja múltiplos vôos femininos. Para ele – que tranca a adega, o vinho é para negócios, ostentação e frescura. E  não para ungir o umbigo e a boca de uma mulher. Este jamais leu cada uma das linhas do Cântico dos Cânticos nem sabe coisa alguma da Criação e, menos ainda, da Creação!

Então, abra a sua casa para poetas, músicos e mulheres-Poesia. Homens, só os de caráter humano, moderados na Torá e nos Nevi’im, porque a luz está (e virá com eles) e não criarão obstáculos para o seu crescimento diante do Eterno. Hai capito? Porém, não seja impiedoso, tenha misericórdia daquele que desconhece o céu, a terra, o mar, o inferno e o paraíso, e nunca perdeu o sono, nem contou estrelas, nem parou diante da lua, nem se deixou à brisa e nunca viu anjos e demônios nem olhou o vazio, nem riu à toa, nem chorou à toa, nem xingou à toa, e nunca viu uma casinha no campo vazia e abandonada, nem pôs as mãos à boca diante de uma cama e de um espelho antigos, nunca possuiu asas de arcanjo ou de inseto, para voar sobre oceanos nem quis escalar montanha alguma. Ele desconhece o material de que a alma é formada. Misericórdia, filho! Ele é insípido porque não amou nem foi amado, ainda!

Va bene, figlio mio, va bene, não é tudo! Por agora descanse, e quando estiver diante do Eterno, cubra-se com seu Talit e Kipá. E quando estiver com sua família, ponha sobre a sua mesa o pão feito em casa. Rasgue-o com as mãos, as mesmas que tocam a Mezuzá – nunca com faca. O pão puro sem as injustiças! O pão sem a liberdade de outrem, nem a fome, a cárie ou a privação de outrem, nem a nudez ou a dignidade de outrem, nem a opressão sobre outrem, nem a tristeza ou dor de outrem. O pão sem o corpo, a alma, o espírito e as afeições de outrem, nem o sangue ou a vida de outrem. A mesa deve ser simples. O seu pão, suado. E as suas mãos, filho, justas!

Pietro Nardella-Dellova, Ao Figlio e la Piccola Caffeteria, in A Morte do Poeta nos Penhascos e Outros Monólogos. São Paulo: Editora Scortecci, 2009, p. 35)