Naquele tempo, a cidade era menor, as noites mais longas e quietas, as pessoas mais cordiais (do conto Essa mulher, de Eric Nepomuceno)

Primeiro, veio a surpresa. Um imenso pano opaco cobria um pedaço da areia da praia de Copacabana. Distribuídos embaixo dele, em intervalos regulares, dez volumes cujas silhuetas insinuavam corpos humanos. Depois, veio a aflição. Por que os cadáveres, quem eram? Percebi, então, que se tratava de ato revoltado e sofrido em memória do ajudante de pedreiro Amarildo Dias de Souza, desaparecido há 10 anos. Os corpos eram manequins, cada qual representando um ano do sumiço do Amarildo, depois de ser detido em casa por PMs na Rocinha e levado para “prestar esclarecimentos”. A investigação, que resultou na condenação de 12 policiais, concluiu que Amarildo foi torturado (com descargas elétricas, saco plástico na cabeça e afogamento em balde com água) e morreu em consequência das sevícias.

Não foi fácil concluir minha caminhada. O lindo dia de céu claro e a paisagem embriagadora no horizonte não combinavam com o clima da tragédia que destruiu mais uma família de despossuídos. Uma família que, como tantas outras, não teve sequer o direito de enterrar um dos seus.

O crime bárbaro cometido contra um trabalhador acaba afogado pelas incontáveis violências cotidianas. É como se todos estivessem apenas aguardando a próxima tragédia, como destino manifesto, inevitável como a noite que se segue ao dia. Os rostos tristes e machucados que vi na praia de Copacabana sumirão rapidamente na poeira anônima dos noticiários.

Ruy Castro fez recentemente um pequeno apanhado de crimes e incidentes que andam acontecendo em larga escala no Brasil. São quase miudezas se comparados com a devastação ambiental planetária e as crises que resultam em milhares de refugiados. Quem quer saber da mulher que, na Bahia, envenenou marido e filhos e filmou o gajo estrebuchando até morrer? Ou do pai que, em Uberaba, atirou no filho por causa do uso de um roteador? O que dizer do cliente que, em São Paulo, fuzilou o segurança do bar após ser impedido de entrar no estabelecimento? É de amargar! Todos os casos, no entanto, desenham o país perturbado, em estado de ansiedade crônica, com violência em expansão. E não me venham dizer que tudo isso é fruto do quadriênio monstruoso que vivemos a partir de 2018. Como qualquer processo fermentativo, a coisa vem de longe.

Dois casos mobilizaram em especial meu imaginário. Num condomínio na Taquara, Zona Oeste do Rio, um policial civil, morador do local, abriu fogo contra seus vizinhos que participavam de uma festa no salão do conjunto. Três deles ficaram feridos. A causa? Uma reclamação contra o volume do som. Assim é. Do desconforto à agressão física, a distância é o gatilho de uma arma. Entre janeiro de 2018 e dezembro de 2022, houve 70 homicídios e mais de 14 mil agressões durante brigas entre vizinhos no Estado do Rio.

Na vila de minha infância, a vizinhança era de outra natureza. O vizinho era aquele que, na emergência, cedia um pouco de sal para o refogado e um tantinho de fermento para o bolo improvisado. Era aquele que abria as portas para assistirmos televisão, luxo a que poucos de nós tinham acesso. De quebra, emprestava a revista Intervalo, com a programação dos poucos canais.  Era o interlocutor noturno, nas cadeiras que, em círculo, compartilhavam angústias e esperanças. Era o peladeiro botinudo que me transformava, por contraste involuntário, em Dida ou, vá lá, Garrincha. Era, sobretudo, o que enxugou minhas lágrimas e meu desânimo no momento da ferida profunda.

O segundo caso foi o de Gabriela Anelli, torcedora palmeirense estupidamente assassinada por um flamenguista idiota. A garrafa que arremessou na direção de Anelli espatifou-se e os fragmentos a atingiram mortalmente no pescoço. É assustador como a cultura da violência invadiu os estádios de futebol. Hoje, é programa de risco frequentar arquibancadas. Como bem observou Carlos Eduardo Mansur, a violência nossa de cada rodada já parece não chocar.

Impossível não lembrar do tempo, já encurralado nas névoas da memória longínqua, em que, ainda moleque, eu frequentava o Maracanã em dias de grandes jogos, todos com mais de 100 mil torcedores. Jamais me senti ameaçado pela multidão, a rivalidade se exprimia por ferramentas, digamos, civilizadas. Ao final da partida, a gente descia a rampa de acesso às arquibancadas lado a lado com a torcida adversária, sem que fluíssem rios de sangue ou rolassem cabeças quebradas. É como disse Obdulio Varela, El Negro Jefe, capitão da seleção uruguaia campeã da Copa de 1950: Afinal de contas, ora bolas, futebol é apenas um jogo.

Aonde vamos parar?

Abraço. E coragem.