Não há nada mais terrível do que uma ignorância ativa (Goethe)

Juca Kfouri é dos raros cronistas esportivos que respeito. Daqueles que sabem que a dança do esporte está colada na melodia da sociedade. Pois o Juca suspendeu por alguns instantes o tema usual de suas colunas para tratar de outro, muito mobilizador e doloroso. A eutanásia.

Sua irmã Maria Luiza enfrentou um câncer de pâncreas e, depois de muito sofrimento, dor e total desesperança de remissão, morreu semana passada. Lúcida até quase o fim, havia deixado o desejo, registrado em cartório, de que não esticassem artificialmente sua vida. Pode-se chamar de viva a pessoa que já não respira espontaneamente, depende de tubos para manter os metabolismos, apaga a consciência com sedativos potentes para não sofrer dores fortíssimas? Os médicos estão proibidos, no Brasil, de assessorar um fim suave e rápido para quem, irreversivelmente doente, expressou claramente esta vontade.

Há um bloqueio obscurantista em nosso país, impedindo que se discuta, com seriedade, temas como a eutanásia. Em nome da religião, grupos organizados, como a nefasta Bancada da Bíblia, atacam qualquer tentativa de conversar com a sociedade sobre o direito que cada um tem de dispor de sua Vida. Em nome de deuses imaginários, preferem que se prolongue a agonia de quem suplica apenas um fim digno para uma existência que, no sábio dizer do Juca, “deve ser morrida com suavidade, sem estraçalhar a rota dos anos percorridos”.

Infelizmente, no Brasil, Estado laico pra inglês ver, é comum ver o espaço público sequestrado por correntes religiosas. Quem não se surpreende ao entrar numa repartição pública ou na sala de deliberações do STF e ver crucifixos pendurados? Onde a separação Igreja-Estado? A promiscuidade produz aberrações, assimiladas como “naturais” pela frequência com que ocorrem. Vou ficar em apenas alguns casos mais recentes.

Na última Marcha para Jesus, evento privado, parcial e indevidamente financiado por recursos públicos, um representante do atual governo federal disse que “nós estamos em Brasília não pela nossa perna, mas levantados por Deus para cumprir um propósito”. Discursinho rigorosamente igual ao do Negacionista Inelegível, que sempre afirmou estar “cumprindo missão divina” na presidência. O que dizer da campanha do advogado Cristiano Zanin para garantir vaga no STF? Peregrinou até os membros do consórcio evangélico que habita o parlamento, para assegurar que é “homem de família” e “católico” e sinalizar que não moverá palha para colaborar no debate de temas como o aborto. Capitulações que desinformam, despolitizam, privilegiam. Assustam, e medo é matéria-prima de todas as formas de autoritarismo.

Por falar em privilégios. Entre 2018 e 2022, o segmento evangélico foi presenteado com isenção de ICMS por até 15 anos, perdão de dívida de R$ 1,4 bilhão referente à Contribuição Social sobre Lucro Líquido e isenção de IPTU sobre imóveis alugados. Na reforma tributária aprovada há poucos dias pela Câmara dos Deputados, entidades religiosas, templos de qualquer culto, incluindo suas organizações assistenciais e beneficentes, estão isentos de impostos. A tradução (à moda de Orwell): todos os brasileiros são iguais, mas uns são mais iguais do que os outros.

Quem tem no currículo Inquisição e Cruzadas, cumplicidade com expedições coloniais, discriminações variadas contra mulheres e homossexuais e um número descomunal, e crescente, de casos de pedofilia, não deveria ter autoridade para criticar a liberdade de interromper a Vida de forma espontânea. Um assunto que se deve abordar sem o cutelo chantagista do pecado.

Está mais do que na hora dos brasileiros ultrapassarem as ameaças dos arcaicos e debaterem a eutanásia. Como fizeram Alemanha, Bélgica, Espanha, Holanda, Luxemburgo e Portugal. Não consta que afundaram na perdição e no caos. À revelia dos perversos que defendem o sofrimento acima de tudo e dos supersticiosos que invocam o invisível para justificar a dor, é preciso, e aqui chamo novamente o Juca, “sem medo das patrulhas obscurantistas, modernizar a legislação para que cada um possa escolher como fazer com a própria vida”.

Abraço. E coragem.