Ao Juca Kfouri, irmão de memórias e esquadrões inesquecíveis.

Sua senhoria trila o apito. Começa agora o match decisivo da Copa do Mundo, neste estádio de Rasunda. Dia chuvoso na capital sueca, momento histórico para o esquadrão de ouro. Assim imagino que Oduvaldo Cozzi começou a transmitir a partida entre as seleções do Brasil e da Suécia, decidindo a Copa de Mundo de 1958. O estilo elegante do locutor paulistano, extinto faz tempo, nos transportou, em êxtase, ao gramado onde se jogou uma das mais espetaculares partidas do selecionado brasileiro. Em meio aos chiados de rádios a válvula, adivinhávamos o baile, que completou 65 anos. Baile regido por Didi (eleito o melhor jogador da Copa), Garrincha e Pelé.

O Menino comemorou como pôde. Ladeando um pequeno gramado na vila de casas, havia uma mureta de cimento áspero, lixa perfeita para fabricar as bainhas dos botões artesanais. Craques eternizados na memória. Alguns buracos na mureta permitiam que a água da chuva, acumulada na terra encharcada, escoasse. Pois foi nestes buracos providenciais que extravasamos nossa euforia. Substituímos os tradicionais traques Caramuru por cabeças de nego, pequenos cilindros de papel pardo com pólvora socada. Quando explodiam nos buracos, o efeito era poderoso, megatônico. O eco reproduzia estrondos parecidos com os de canhões. Viva!

Se perguntar a alguém que viveu aqueles momentos qual seria a trilha musical da Copa, é pule de dez que cantarolará “A taça do mundo é nossa/com brasileiro não há quem possa”. Por artes sempre misteriosas dos recuerdos, meus tralalás são outros. O primeiro é a marchinha Mané Garrincha, composta por Jorge de Castro, Wilson Baptista e Nóbrega de Macedo para o carnaval de 1959. Cantada por Angelita Martinez, vedete do teatro rebolado, tinha um trecho que convidava ao duplo sentido. Dizia: “Mané que brilhou lá na Suécia/Mané que nasceu em Pau Grande”. Claro que adolescentes e nem tanto substituíam o “em” por “com”. Garrincha, que com mulher não era mole (sem ou com duplo sentido) e ainda não tinha encontrado Elza Soares, teve um caso com Angelita.

O outro, cujos nome e compositor desconheço, dava a escalação completa da seleção antes da final (!) e celebrava a conquista. Vale a pena registrar: “Gilmar, De Sordi, Belini, Zito, Orlando e Nilton Santos, Garrincha, Didi, Vavá, Pelé e Zagalo, esse é o escrete nacional/Que vencendo a Suécia, com bravura e decisão,/Conquistou para o meu país o cobiçado título de campeão”. Tá, a coisa tem jeito de rapé, mas quem disse que memória é júri de festival?

Era tempo de futebol romântico. Ninguém chamava técnico de professor, craques faziam carreira completa no mesmo clube, criando vínculos duradouros com a torcida, as camisas não eram outdoors ambulantes. Não existiam dancinhas midiáticas, nem gestos devocionais caricatos, na comemoração dos gols. Em 1958, Vicente Feola, técnico da seleção, ouviu os conselhos de Didi e Nilton Santos, boleiros experientes, e escalou Garrincha e Pelé na partida decisiva contra a União Soviética. Os titulares Joel e Dida, ambos do Flamengo, eram muito bons, mas quem seria páreo para os dois gênios que os substituíram? Jogadores influenciando técnicos. Hoje? Impossível.

Há uma história saborosa sobre a partida contra a URSS. Garrincha comeu a bola. Logo no primeiro minuto, demoliu a defesa soviética e mandou um petardo na trave de Iashin, o Aranha Negra, um dos melhores goleiros do mundo. Foi assim durante todo o jogo. O lateral-esquerdo Kuznetsov não viu a cor da bola. Terminada a partida, os soviéticos, derrotados por dois a zero, voltaram para o vestiário. De repente, ouviu-se um forte estrondo. Tinha sido Kuznetsov, que arremessara sua chuteira contra a parede e disse, aos berros: Nunca mais jogo futebol! Nós não sabemos que jogo é esse! Quem sabe são eles!

O pessoal da velha guarda afirma que a conquista da Copa em 1958 curou a ferida do Maracanazo. Não penso assim. Acho que não há o que cicatrizar. A vida é construída pela lembrança dos bons e maus momentos. Não dá para eliminar uns ou outros. A derrota para a Celeste, em 1950, é poderosa fonte de ensinamentos, não uma página vergonhosa. Interferência da política no esporte, arrogância, ufanismo da imprensa, são apenas alguns dos graves equívocos brasileiros que facilitaram a vida de Obdulio Varela e seus companheiros. Aprendemos a lição? Não sei. Futebol hoje é, cada vez menos paixão e mais business, e os idos de 1958 são apenas uma imagem bela e criativa do que já fomos. E jamais voltaremos a ser.

Abraço. E coragem.