O tempo não tem restituição alguma (Antônio Vieira)

Excesso de contingente. Dessa maneira escapei do serviço militar obrigatório. Um pistolão providencial e me dispensaram do que seria certamente uma perda de tempo monumental. Direita volver!, um, dois, feijão com arroz, marcha soldado cabeça de papel, sentido!, descansar!!, ordinário, marche!! No certificado, lá estou eu com o ralo bigodinho dos dezenove anos, aliviado e livre como uma centopeia.

A dispensa formal se deu numa cerimônia no Passeio Público, centro do Rio. Claro, milico não dispensa uma formalidade. Faz parte do pacote da obediência cega. Missão dada é missão cumprida. Nós, felizardos isentos da caserna, precisávamos apenas repetir as palavras inúteis que o sargento bocejante ia berrar com a convicção em farrapos. Juro isso, prometo aquilo. E começou a pantomima. Assim que percebi que ninguém seria punido se apenas fizesse mímica, foi o que fiz. Mexi os lábios como no cinema mudo, sem fundo musical. Bzzzshhhblaaa… Uns sapos pulavam na grama, ricocheteando em nós. Testemunhas anfíbias da galhofa.

Quantas vezes, ao longo da vida, a gente participa de rituais vazios, quando gostaríamos de estar em outro lugar, com outras pessoas, tomando sorvete de casquinha, rindo de bobagens ou pegando jacaré numa onda camarada? Quantas reuniões, cerimônias, solenidades, sequestraram preciosos e irrecuperáveis tempos?

Por acidente, um baiano e um argelino me fizeram lembrar a sensação de perda de tempo. Pior quando ela vem acompanhada de sentimentos de culpa. São histórias que chegaram em dois livros que li em sequência. João Ubaldo Ribeiro narra os traumas associados à primeira comunhão, abastecidos por mal digeridas definições de pecado. Há humor no texto, mas nas entrelinhas dá para perceber a aflição de um menino de 12 anos entre a cruz e a caldeirinha, entre o despertar para as promessas da carne e as proibições dogmáticas da religião. O ritual abafa a contradição, mas, como não a elimina, produz sofrimento.

Albert Camus passou por processo semelhante. Para fazer a prova de admissão no antigo curso ginasial, precisava antecipar a primeira comunhão (tinha 9 anos). A avó, mulher de maus bofes e vontade categórica, deu um jeitinho (é, na Argélia também tinha disso) e o pequeno Albert começou a frequentar aulas de catecismo. Sempre pensando nas peladas que estava perdendo. Com memória tinindo, recitava perguntas e respostas que o padre ensinava. Para tudo havia respostas definitivas… No dia em que fugiu do padrão soturno, sorrindo para um colega, levou um violento tapa na cara do padre. Passou fácil pelo ritual da primeira comunhão, cujas palavras, disse mais tarde, não lhe significavam rigorosamente nada. A roupa branca, a fita no braço, a vela comprida na mão, era sequência que só interessava aos adultos. Seu tempo de criança estava em outro lugar.

Na tradição judaica, o ritual juvenil é o bar-mitzva. Aos 13 anos, o menino passa por um processo de aprendizado que o transforma em “adulto”, isto é, apto a participar com pleno direito da liturgia religiosa. Vivi essa situação. Um especialista na área, doce homem, de quem guardo memória carinhosa, me passou todas as informações. Memorizei tudo direitinho, fui aprovado e satisfiz a vontade dos adultos. Mudou minha vida? Tive iluminações de sabedoria? Nem um pouco. Os grandes mistérios não se perturbaram, os dogmas não aliviaram a carga existencial.

Religiões adoram cláusulas pétreas. Dúvida (em gestos e pensamentos) e pecado são rima rica para elas. Para o tempo de crianças e adolescentes, perguntadores inseguros, seria melhor que elas prestassem atenção num certo Padre Ezequiel, personagem do poeta Manoel de Barros n’O livro das ignorãças. Fala, querido pantaneiro: “Descobri aos treze anos que o que me dava prazer nas leituras não era a beleza das frases, mas a doença delas. Comuniquei ao Padre Ezequiel, um meu Preceptor, esse gosto esquisito (…) Gostar de fazer defeitos na frase é muito saudável, o Padre me disse. Ele fez um limpamento nos meus receios. O Padre falou ainda: Manoel, isso não é doença, pode muito que você carregue para o resto da vida um certo gosto por nadas… E se riu”. Quanto tempo afetivo ganhariam crianças e adolescentes se, ao invés da severidade adulta, do gesso ritualístico e dos infernos religiosos, tivessem acolhimento para suas dúvidas e carências! Tempo de diálogo ao invés de tempo de enquadramento e rigidez.

Abraço. E coragem.