A boca aberta não era por espanto ou susto. Menos ainda preparo para levá-la ao trombone. O som ambiente, do motorzinho velho conhecido, acendia sinais amarelos e medos antigos, mas o dentista tinha seus truques. Balançava minha bochecha antes de aplicar a anestesia salvadora e falava de nossa paixão comum: a música clássica. Foi assim, quase na horizontal, que, pela primeira vez, ouvi falar de Jacqueline du Pré.

Violoncelista extraordinária, Jacqueline construiu uma carreira sólida nos anos 60 e 70. Músicos e regentes admiravam sua enorme sensibilidade musical, que ganhou dimensão notável no Concerto para Violoncelo, de Elgar. Empunhando um de seus Stradivarius, ela conseguia a rara façanha de dialogar, simultaneamente, com o instrumento e o ouvinte. Tinha grande prazer no que fazia, o que ganhava forma em seu frequente sorriso (não por acaso, Smiley era seu apelido). De repente, a tragédia.

Com menos de 30 anos, sentiu que perdia a sensibilidade nos dedos. O diagnóstico de esclerose múltipla foi a sentença de morte na carreira. Enfrentou bravamente a doença, que acabou matando-a em 1987, aos 42 anos. Vendo suas performances nas imagens que deixou dá um nish guit, um mal-estar, pelo que se perdeu. Não há qualquer justiça no vale de lágrimas e, por que não?, prazeres que nos coube atravessar.

Esta semana, um amigo me enviou um pequeno documentário sobre Jacqueline. Há depoimentos de gente como Zubin Mehta, Pinchas Zukerman e Daniel Barenboim (com quem ela foi casada), que confirmam a importância da violoncelista na cena clássica. Foi desses presentes inesperados, que me acendeu memórias e desejo de reencontrar Jacqueline (neste momento, ouço-a no Concerto de Elgar; o violoncelo parece a voz potente, melancólica e expressiva de algum conhecido ou, melhor dizendo, uma multidão de viventes). Os presentes inesperados são os melhores. Os gestos espontâneos são os mais valiosos. O poeta Manoel de Barros disse que é no ínfimo que se vê a exuberância.

Lá atrás, terá sido em 1970?, um pequeno grupo de amigos da faculdade fez uma surpresa no meu aniversário. Eu já estava na idade em que não assoprava mais velinhas, nem tomava guaraná com brigadeiros. Coisa de criança, onde já se viu. Estava sozinho em casa, no silêncio dos meus anos, quando tocou a campainha. Eram eles, vinham em missão de quebrar a solidão. Nas mãos, um presente que guardo até hoje. Um LP da banda norte-americana Blood, Sweat and Tears, que fazia ricas combinações de jazz, blues, rock e música clássica. Pelo vozeirão de David Clayton-Thomas conheci God bless the child, e através desta canção cheguei a Billie Holiday. Das variações instrumentais sofisticadas sobre as Gymnopedies cheguei a Erik Satie. Devo ter gasto alguns sulcos do vinil de tanto ouvi-los, mas o mais importante tinha sido o gesto afetuoso. Não há prateleira suficientemente espaçosa onde possa acomodá-lo.

Daqueles amigos de faculdade tenho vagas notícias. O dentista que me abriu veredas de Jacqueline (e, por tabela, de Barenboim) está aposentado. Todos ajudaram a criar sentidos e vivências onde antes havia aridez. Não foi pouco.

Abraço. E coragem.